Hermilo Eduardo Pretto*
É sempre um desafio falar de Deus porque é muito grande o perigo de imaginá-lo à nossa imagem e semelhança. O filósofo e escritor francês Voltaire escreveu certa vez que, após Deus haver criado o ser humano à sua imagem e semelhança, o próprio ser humano deu o troco, criando Deus à própria imagem e semelhança. Não há como negar, com efeito, que, por trás de cáustica ironia, aí se esconda algo de verdadeiro.
Antes de mais nada, a experiência de Deus tem ligação vital com as experiências humanas. Em razão disso, a infinita riqueza da imagem divina revela, em cada situação, algo que responde à situação vivida pelas pessoas, em termos de realização ou frustração, de paz ou de sofrimento. Essa é a condição da vitalidade e da autenticidade da experiência de Deus. E é também a garantia de uma resposta personalizada aos anseios humanos mais profundos. É aí que a experiência de Deus assume a forma do encontro.
Mas além desse aspecto, que revela a face gratificante da experiência de Deus, há que se destacar um outro ainda, revelador da mesquinhez humana. Todo ser humano, na verdade, de uma forma ou de outra, anda à procura de justificações elevadas para aquilo que planeja e realiza. O que foi projetado e efetivado sem Deus busca agora seu aval.
Quando isso acontece, em vez de um Deus de graça e justiça está-se falando das projeções humanas, dos desejos raramente confessados. Para toda pessoa que se alimenta na fé, é sempre uma situação incômoda agir e reagir em flagrante oposição à imagem de Deus tal como é testemunhada pelas Escrituras Sagradas.
Tais Escrituras testemunham, como dado de fé, que a realidade de Deus está infinitamente acima de tudo aquilo que a imaginação humana possa projetar, mesmo em seus momentos de maior elevação. Por outro lado, há que se reconhecer também que não é facultado ao ser humano acreditar em qualquer divindade. Não há como imaginar Deus em ligação com o sufocamento da vida. O Deus do testemunho bíblico é aquele que tomou partido em favor de seu povo escravo, que estabeleceu Aliança com esse povo porque o quer aberto à humanidade e cuja face mais verdadeira foi revelada pelo Filho, que se fez carne em Jesus de Nazaré. É fundamental, por conseguinte, dar-se conta de que é preciso ver a realidade divina em termos de proximidade e comunhão.
Cabe agora perguntar: que é que, na verdade, pode ser dito a respeito desse Deus?
Como primeira observação, parece-me possível dizer que ele é a referência maior e definitiva do ser humano. É famosa a afirmação surpreendente de Santo Agostinho na abertura das Confissões: “Fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso coração enquanto não repousa em ti”. As pessoas que fizeram uma autêntica experiência de Deus sabem como isso é verdade. Não é mera casualidade que a questão sobre Deus surja justamente quando o ser humano busca o sentido último de sua vida, quando faz as experiências mais profundas e significativas, quando ele se situa no limite entre o sentido e o absurdo.
Todos os povos, pelo que nos é dado saber, fizeram algum tipo de experiência religiosa. As formas, muitas vezes impregnadas pela magia e pela superstição, na tentativa de tornar propícia a divindade, testemunham assim mesmo a dimensão essencialmente religiosa do ser humano. A questão, na verdade, é bem mais complexa quanto possa parecer à primeira vista. E isso em razão de as experiências humanas serem geralmente confusas e cheias de contradições. Há sempre uma mistura de verdades, de meias verdades e de falsidades. A religião reflete a complexidade do próprio ser humano.
Na história da humanidade, o mais das vezes, o que se chegou a definir foi uma pluralidade de deuses e deusas, quase sempre em conflito entre si, visando o domínio sobre o mundo. E quanto mais falsa for uma divindade, mais ela irá justificar toda espécie de maldade. Idolatria e injustiça sempre andam de mãos dadas. Por aí é possível ter-se uma ideia da razão pela qual, no testemunho bíblico, a luta contra a idolatria não conheça trégua. Por trás da busca de um Deus verdadeiro esconde-se a preocupação, por vezes até dramática, de zelar de todas as formas pela dignidade humana.
A frequente confusão entre Deus e os ídolos decorre também, e principalmente, da radical ambiguidade que marca a existência humana em seu peregrinar pelos caminhos da história. Como aqui a preocupação é a de pôr em destaque a afirmação soberana da dignidade humana, porque este é o sentido daquilo que definimos como história da salvação, é importante não esquecer que não há exceções possíveis em termos de ambiguidade. Assim, todo ser humano é constantemente tentado pela tendência à idolatria e a toda forma de manipulação. Sem uma atenta vigilância, ele tenderá a agir em flagrante traição à sua identidade profunda, que reflete a imagem e a semelhança divinas.
Isso vale para todos os povos e, por conseguinte, também para Israel. Não se pode esquecer, com efeito, que a grandeza e a profundidade de suas experiências religiosas são expressões do dinamismo da graça e não, propriamente, de eventuais méritos.
Israel, que reconhecemos ser o povo da primeira Aliança, também fez uma experiência de Deus, encontrando-o nos caminhos de suas peregrinações e de seus sofrimentos.
Quem conhece de perto a história deste povo sabe quantas vezes, e de quantas formas, ele cedeu à tentação da idolatria justamente porque necessitava legitimar a própria maldade. A idolatria torna-se poderosa tentação quando as pessoas, traindo a própria consciência, necessitam justificar o mal que praticam, ou pretendem praticar. Os ídolos são produtos da consciência traída da humanidade. É esse dado que torna a idolatria um pecado de enorme gravidade.
O Deus verdadeiro é sempre incômodo porque assegura fidelidade incondicional à consciência em termos de verdade e de justiça. Quem opta pelo mal traindo a consciência não gosta de um Deus assim. Nesse sentido, os ídolos tendem a ser sempre interessantes porque indicam o caminho do menor esforço, aquele que o ser humano mais gosta de trilhar. Se considerarmos a questão em termos quantitativos, não é difícil perceber que a maioria das pessoas prefere a idolatria. Poucas, na verdade, são aquelas que adoram o Deus verdadeiro, aceitando somente o que for caminho de verdade e de justiça.
Aceitando que o Deus testemunhado pelas Escrituras Sagradas, resultado de um longo e muitas vezes penoso trabalho de depuração, seja de fato o Deus verdadeiro, aquele que inspira e estimula o ser humano a buscar sua autêntica grandeza, surge imediatamente uma pergunta: qual a face desse Deus que Israel encontrou em suas peregrinações? Cabe aqui, previamente, uma observação: não se olha para as Escrituras Sagradas como para uma fonte que poderia demonstrar verdades. Parece-me mais oportuno falar em testemunho, porque nele o povo empenha a própria palavra e até aceita o risco da morte. Ganha espaço, na perspectiva de abordagem que está sendo seguida, a categoria do encontro, até porque aí se manifesta algo de extraordinária relevância em termos de significação. A experiência humana serve de suporte do que se vai dizer.
De alguma forma, e esperando não simplificar em excesso a questão, poder-se-ia dizer que o ídolo é fabricado, ao passo que o Deus verdadeiro é encontrado. O ser humano pode projetar o ídolo porque tem muitos interesses em jogo. Assim, o ídolo resultará feito à imagem de quem o projetou. Já o Deus verdadeiro está além de toda imaginação. O encontro com ele nunca poderá ser programado porque ele irrompe no interior da história humana, gerando crises e propondo alternativas radicais em termos de fidelidade aos caminhos que conduzem à plenitude da vida.
Aqui não é possível nem prever nem imaginar. Compreende-se, a partir daqui, porque é que os enviados de Deus exercem uma função crítica junto ao povo de Israel, ajudando-o a não ceder à idolatria. E em nome da fidelidade à missão tais enviados acabam por revelar-se pessoas incômodas, sofrendo incompreensão, perseguição e morte. Profecia e martírio, com efeito, frequentemente andam juntos. Temos aí um processo educativo que não será concluído enquanto o ser humano estiver peregrinando na história, imerso em situação de radical ambiguidade. Não há uma única situação, na vida do ser humano, por melhor que seja, que possa ser considerada definitiva.
A partir de tais reflexões, uma pergunta naturalmente se impõe: como era o Deus que Israel encontrou em seus caminhos? Esse Deus foi aos poucos revelando-se como extraordinariamente próximo a ponto de ouvir o clamor dos escravos e de assumir pessoalmente o compromisso com a vida e a dignidade humanas. Temos aí um elemento certamente importante, porque revela uma das características mais significativas daquele que na fé bíblica denomina-se Deus da revelação.
Uma comparação pode ajudar-nos na compreensão daquilo que estou querendo dizer. Os ídolos necessitam de sacrifícios para que possam despertar de sua letargia e interessar-se pelos destinos da humanidade. Deus, pelo contrário, antecipa-se e vai além de tudo o que o ser humano possa desejar e pedir. Mais tarde, o apóstolo Paulo dirá, escrevendo aos romanos, que Deus manifestou seu amor para conosco amando-nos quando ainda éramos pecadores, isto é, anteriormente a qualquer iniciativa que pudesse expressar algum propósito de conversão. Esta vem depois, já como resposta ao dom incondicional de Deus. Ela não é condição e sim consequência. Nessa perspectiva, não há nada que o ser humano possa fazer para garantir o dom de Deus.
A insistência no reconhecimento de que o Deus testemunhado pelas Escrituras Sagradas não faz acepção de pessoas deixa no ar uma pergunta um tanto incômoda.
Fala-se com frequência, nas próprias Escrituras, nos ensinamentos do Magistério da Igreja e nas reflexões teológicas, que Deus fez Aliança com um povo: estaria isso indicando uma situação de privilégio? À medida que o tempo foi passando e se foi aprofundando a experiência religiosa, novas facetas de Deus foram sendo reveladas, porque ele estabelece uma Aliança, que é particular como fato, mas que se abre a uma perspectiva universal de salvação. É importante ressaltar que, no testemunho das Escrituras Sagradas, os atributos de Deus assumem as feições das mais significativas experiências humanas. É possível observar aí uma diferença essencial em referência à imagem divina explicitada pelas especulações filosóficas. Estas tendem a fixar-se em atributos de eternidade, sem nenhuma incidência daquilo que o ser humano experiencia no espaço e no tempo.
Pelo que diz respeito, especificamente, à Aliança, note-se que temos aí a eleição de um povo que não pode reivindicar qualquer mérito e que precisa aprender que sua escolha é em vista de um serviço. Este é um aspecto que Israel custou a compreender e, mais ainda, a aceitar. Como muitas vezes ocorre na experiência humana, o dom tende, de forma quase espontânea, a tornar-se privilégio, o serviço tende a tornar-se poder e a comunicação tende a tornar-se conservação. A Aliança significa o compromisso de Deus em assegurar vida plena a toda a humanidade. Uma leitura atenta das Escrituras Sagradas irá mostrando que o tema da vida permeia todos os testemunhos até se chegar às explicitações de Jesus, que define sua vinda como compromisso em fazer com que todos (mulheres e homens) tenham vida e a tenham em plenitude.
Até aqui se falou de Deus tomando como referência quase exclusiva os testemunhos do Antigo Testamento. O Novo Testamento traria alguma novidade em termos de revelação de Deus? Parece-me difícil sustentar que, em referência a essa questão, nada de novo tenha ocorrido. Não quero agora deter-me ou delongar-me, até porque numa meditação é minha intenção refletir com mais vagar sobre a figura do Cordeiro de Deus, aplicada por João Batista a Jesus. De todo modo, parece-me possível dizer que no Deus revelado por Jesus não há solidão porque ele é Pai, Filho e Espírito Santo.
Mas o que pode ser percebido, por trás de tudo isso, é a presença divina que vem como infinita misericórdia para salvar o que estava perdido. Assim, o Criador é também o Redentor. O fato novo é que agora, na plenitude dos tempos, ocorre a superação dos representantes, ou intermediários: “Muitas vezes e de muitos modos, Deus falou outrora aos nossos pais, pelos profetas. Nestes dias, que são os últimos, falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas e pelo qual também criou o universo” (Hb 1,1-2). Proximidade e compaixão são duas faces desse Deus.
* Hermilo Eduardo Pretto nasceu em 28/01/1945 e faleceu em 25/01/2004. Presbítero e membro da Congregação dos Missionários de São Carlos (escalabrinianos), obteve mestrado em filosofia (Roma, Universidade Gregoriana) e em teologia dogmática (Univ. Católica de Friburgo, Suíça). Lecionou no ITESP, em São Paulo-SP, durante 25 anos, deu cursos no Instituto de Teologia para Leigos da Diocese de Santo André-SP e na Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Além de vários artigos sobre epistemologia, teologia da graça e vida religiosa, publicados principalmente na revista Vida Pastoral (Ed. Paulus), escreveu: Em busca de vida nova (Ed. Paulinas, 1997) e A teologia tem algo a dizer a respeito do ser humano? (Ed. Paulus, 2003).
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