Princípios Mínimos de Teologia Pastoral
Paulo F. Dalla-Déa
Há algum tempo vem me preocupando a questão do julgamento da pastoral. Como fazer uma pastoral minimamente competente? E como posso (podemos) ou devo (devemos) julgá-la? Quem pode se atrever a julgar a pastoral que faço (fazemos) em grupo ou comunidade? Não se podendo ser juiz em causa própria, qual instância ou entidade pode dizer o que é bom ou ruim?
É lógico que não estou prescindindo de instâncias diocesanas ou nacionais. Mas tenho visto gente fazendo uma pastoral em franca dicotomia com os seus pares (paróquia, região, diocese ou país) e dizendo que se está certo. Citam-se textos bíblicos, do Magistério eclesiástico e autores teológicos, num emaranhado que –muitas vezes– se transforma em base ideológica para a ação. O critério da unanimidade não é simplesmente válido, visto que é burra e profetismo é justamente o contrário de unanimidade. Já vi citarem-se os mesmos textos, justificando ações bastante díspares. Retirando-se o uso simplesmente ideológico da Palavra, o que pensar disso?
Será que a pastoral deve ficar restrita ao subjetivismo da ação num emaranhado sem sentido? Ou, de alguma forma haveria a possibilidade de se pensar sobre os particularismos e a fragmentação do real promovida pela pós-modernidade?
Seria possível que houvesse alguns princípios mínimos que orientassem para alguma direção, podendo julgar toda ação pastoral feita? Penso que sim e é justamente isso o que me proponho fazer neste pequeno texto, sem ter a pretensão de finalizar um trabalho. Quero apenas iniciar uma discussão bem necessária. O presente texto tem a característica de um ensaio teológico de princípios. Princípios são assim porque não são deduzidos, mas são bases de um edifício intelectual, não exigindo comprovação, sendo admitidos, provisoriamente, como inquestionáveis. Admitamos, por hora, que esses são princípios básicos que regerão nossa pastoral. Até chegarmos a outros melhores, no debate e na produção teológica, teremos esses por certos. Pelo caráter de ensaio adotado, vou me atrever a não citar autores e escolas de Teologia, embora eles sejam de grande valia para a reflexão ser feita de forma competente. Vou me restringir a citar apenas textos bíblicos, do Concílio Vaticano II e a esparsos textos clássicos de Teologia.
Quero partir da forma do decálogo e elencar DEZ PRINCÍPIOS BÁSICOS para uma pastoral coerente com o Evangelho e a caminhada da Igreja após o Concílio Vaticano II. Vejamos quais são:
1. Pessoas e grupos acima dos prédios. (Mt 5,19-234; 12,9-14; Jo 2,13-22) Para uma pastoral decentemente feita, teremos que prescindir da prioridade à construção e administração de prédios e organismos. Não se pode prescindir de tê-los, nem de construí-los ou de administrá-los Mas se pode prescindir de dar-lhes importância descabida, usando a maior parte do tempo e dos recursos nessas instâncias. Tenho visto membros do clero gastarem 75% do seu tempo e energias em tarefas puramente administrativas, quando poderiam delegar esta tarefa a pessoas muito competentes, voluntários ou não. Não delegar e manter-se ocupado com esses trabalhos da organização concreta da Igreja, manifesta uma ponta de desprezo pelo trabalho dos leigos e ocupa um tempo precioso que poderia ser utilizado de forma mais criativa.
2. Meios pobres. Não temos o direito de fazer pastoral, por melhor que seja, desperdiçando dinheiro, mesmo que o tenhamos para isso. (Cf. Lc 18, 24-30; Mt 6,24-34 ) Felizmente, esse não é o caso da maioria de nossas comunidades. Contudo, há comunidades que tem dinheiro mais do que suficiente para prover as suas necessidades, o sustento de seus eclesiásticos e dos trabalhos dos agentes de pastoral. Fazer uma opção por meios pobres, ao invés de dispendiosos e luxuosos, para ajudar a outras comunidades é dever de justiça. (Santo Tomás e os Santos Padres).
A CNBB dá um exemplo valioso dessa justiça distributiva, com a Campanha da Fraternidade e a Coleta do Advento. Na Igreja há vários órgãos internacionais que recolhem doações de particulares e organismos, distribuindo-as para regiões pobres, necessitadas ou com calamidades. Meios assim, de partilha voluntária, precisam ser incrementados e estendidos, nas dioceses e paróquias. (Cf. 2 Cor 9,6-15) A partilha é o exemplo mais básico e concreto do Evangelho: é na partilha do pão que Jesus se faz presente. Implementar meios concretos e organismos de partilha e distribuição eqüitativa de bens, pessoas e serviços vai fazer a Igreja ser mais evangélica. Sobre isso não se pode escolher: é tarefa necessária de todos. A Igreja não pode escolher entre ser fiel ou não ao Evangelho. Ela só pode escolher entre duas possibilidades de ser mais fiel ao Evangelho de Cristo.
3. Continuidade Pastoral. No Brasil, temos uma democracia muito frágil. Na verdade, tivemos poucos anos democráticos a partir da proclamação da República. Por isso, os hábitos autoritários e ditatoriais se incorporaram ao nosso cotidiano e ao imaginário coletivo brasileiro. Vêem-se políticos querendo mudar a constituição ao assumir o poder. Vêem-se também clérigos e agentes de pastoral querendo destituir as pessoas e as regras que são do que "ocupava o posto" anteriormente . O que é isso senão uma tentativa de golpe disfarçado? O mesmo se diga para a necessidade de não terminar as obras de governantes (e vigários) anteriores, querendo começar tudo do zero... Tudo isso, tem sua origem no imaginário coletivo do autoritarismo que precisamos arrancar de nossas cabeças à custa de muita ascese, oração e treino. ("Os grandes das nações vos oprimem, mas entre vós não sejais assim..." Mt 20,25) Isso não seria ainda um resquício de absolutismo monárquico do qual a Igreja não se desvencilhou? Não podemos nos basear nos critérios da pior política brasileira se quisermos fazer um trabalho minimamente evangélico e relevante pastoralmente.
É preciso que continuemos o trabalho pastoral anterior, dando nossa contribuição criativa. Continuidade não é continuísmo: é necessário valorizar o que havia antes e começar a trabalhar a partir disso, realizando um desenvolvimento para melhor, num caminho pedagógico de crescimento coletivo. Mas não se pode ser a favor de golpismos pastorais, como se nada do que existisse anteriormente fosse bom ou razoável e a vida começasse a florescer só agora. É preciso construir sobre a base já feita, já alicerçada, sobre a vida que já floresceu e agora se quer chegar ao tempo do fruto. O povo de Deus só terá a ganhar.
4. Manutenção e aumento da graça. A grande maioria do nosso esforço pastoral acaba sendo dedicada à questão da sacramentalidade. O que é diferente de sacramentalismo. Queiramos ou não, os sacramentos nos ocupam boa parte do tempo. Em geral, dedicamos um bom esforço à preparação para a recepção dos sacramentos. Precisamos começar a pensar sério não só no antes (preparação catequética), mas no durante (celebração litúrgica) e no depois (continuidade e criação de espaço de participação).
O que se propõe para os pais e padrinhos após o sacramento do Batismo de suas crianças? Que plano de continuidade existe depois da Primeira Eucaristia? Do Crisma? Do matrimônio? Da confissão? Em geral, esperamos os casais e as pessoas entrarem em crise para convidá-los para um curso, uma reunião, etc. Não poderíamos ser preventivos antes que curativos? Dei alguns exemplos, só para se ver que muita coisa pode ser pensada e feita.
Mas não podemos ficar apenas no depois. Temos que pensar o antes e o durante. Antes do sacramento do matrimônio e do curso de noivos, o que vem? Nada? Cursos e encontros de namorados seriam, se bem feitos, suficientes para dispensar os cursos de noivos feitos às pressas. Também o durante precisa ser avaliado e revisto. As celebrações, as reuniões e a preparação dos agentes como estão?
5. Benefício dos pobres. A Igreja Católica na América Latina fez e consolidou uma opção preferencial pelos pobres. Opção que se baseia na mais pura veia evangélica e que, por isso, não pode ser desprezada por ninguém. Este princípio quer avaliar toda pastoral pelo benefício que fornece aos pobres. As pastorais e grupos não são iguais, seja por causa da organização e métodos usados, seja por causa das realidades em que atuam. Mas a opção pelos pobres não pode ser desprezada, sob pena de ser infiel ao Evangelho e à caminhada eclesial.
Qual o benefício real que os pobres recebem, por direito de justiça, na atuação de nossas pastorais e grupos? Em que e como os pobres são concretamente lembrados, além das orações e discursos bonitos? Perguntas deste tipo fazem aterrissar os vôos intelectuais bonitos, mas vazios.
Uma paróquia, um grupo ou uma pastoral que não contemple concretamente os pobres é uma igreja que se colocou à margem da comunhão eclesial e que corre o sério risco de perder a chave de entrada para o Reino: "... todas as vezes que deixastes de fazer a um desses pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer." (Mt 25, 46)
6. Participação. Muitas de nossas comunidades estão com agentes sobrecarregados porque não levam a sério suficientemente esse princípio de Puebla. A comunhão deve ser acompanhada da participação. Sempre. E participação é método e não conteúdo: exige-se um processo feito para incluir as pessoas. Numa sociedade tão competitiva, a Igreja é chamada a estar na contramão da História, incluindo pessoas, povos e raças. Todos são capazes de entrar no Reino e todos são convidados pela misericórdia do Pai, não havendo entre nós divisão que seja importante. (Gl 3,28; Mt 28,18-19; At 10,9-16; Ap 7, 4-8) Todos são chamados a trabalhar para o Reino nos grupos da Igreja.
O discurso de que 'não se tem gente capacitada', de que 'ninguém quer assumir', é mistificador e ajuda apenas a não se renovar os quadros eclesiais. Convidando-se as pessoas e dando-lhes responsabilidades ao seu alcance (tempo e capacidade), teremos muita gente participando. Se as pessoas não o fazem é porque lhes damos responsabilidades maiores do que conseguem ou que estão preparadas. Para tal, precisa-se de convite, preparação, treino, incentivo e avaliação. Em outras palavras, um método participativo.
7. Misericórdia. O princípio misericórdia se baseia na premissa de que as pessoas e os fatos gerados por elas são bons, até prova em contrário. É esse princípio que nos leva a acolher o outro, porque se o julgamos mal ou defeituoso, então não nos aproximamos e nem deixamos que ele se aproxime de nós. Acolher o outro com bondade permite-nos que possamos estar em empatia com ele, primeiro passo para a haja aproximação de pessoas, instituições e culturas. (Cf. Jo 8, 2-12) Não é sempre concordar, mas é acolher a pessoa, separando-a do seu erro.
Por causa deste princípio, temos que nos questionar: o que nossa pastoral anda fazendo para mostrar a face misericordiosa de nosso Deus? Como estamos acolhendo os marginais, os drogados, os aidéticos, as prostitutas e os rejeitados da sociedade me geral? Não se trata de uma escolha que possa fazer ou não, mas de um princípio de ação. Ou seja, uma pastoral que não contemple este aspecto estaria sendo infiel ao Evangelho, visto que Jesus tinha como companhia constante analfabetos, pecadores, impuros e rejeitados em geral. (Cf. Lc 5,29-32; 15,1-3) Não se pode esquecer que este princípio reforça o anterior, completando-o.
8. Não dicotomia. A Teologia antes do Vaticano II trabalhava com o raciocínio dicotômico. Separava-se assim, tudo, querendo dar a impressão de autonomia e de clareza: História divina ou humana; Graça ou natureza humana; unidade ou pluralidade, oração ou ação, trabalhar com elites ou com massas de pobres, espiritualidade ou ação social, etc. Precisamos deixar de lado de vez os resquícios desta dicotomia do raciocínio do "ou...ou..." e pensar um raciocínio mais integrador. Pensar na base do "e...e...", segundo o desejo do Concílio Vaticano II. (Cf. Gaudium et Spes 1) Afinal, não é o corpo ou a alma que devem entrar na dinâmica da salvação, mas o homem em sua totalidade e em todas as suas dimensões.
Grande parte das nossas discussões e brigas entre grupos e pastorais tem como base raciocínios dicotômicos deste tipo apontado. Já está na hora de depor as armas e organizar ações na base do "e... e..." Nossas brigas e discussões só gastam tempo e energia em coisas improdutivas e incapazes de nos levar ao Reino e melhorar a nossa vida cristã. (Mt 12, 25; Mc 3,26; Lc 11,17) Só quem lucra com isso é a injustiça e os valores do anti-Reino, que triunfam ilesos na sociedade.
Uma pastoral feita a partir de uma visão unitiva não sobrecarrega com pesos excessivos as pessoas, vendo pecado em tudo o que não seja especificamente religioso. Não amaldiçoa, mas consegue ver a Graça de Deus que brota a partir do humano. Esta pastoral que saberá valorizar o que cada realidade tem de bom e profundo.
9. Maturidade humana e cristã. Toda pastoral autêntica faz pensar e se desinstalar. Uma pastoral que não desinstala, não questiona, não mexe com as pessoas, não é uma pastoral baseada no Evangelho de Jesus, que ensinava a pensar por si próprio. Por isso, Jesus falava em parábolas: para não dar as coisas prontas e acabadas, fazendo pensar e gerando ação nova, baseada em autonomia, convicção. (Cf. Mc 3,1-6; 4,10-12. 33-34)
Jesus é um pregador popular que não se contenta com um povo que o segue, mas quer gerar reflexão para uma nova ação, algo que venha de dentro. (Cf. Mc 1,15) Por isso anuncia que o Reino está perto e entre as pessoas: está começando por dentro e se espraiando até os outros. Um cristão maduro é quem pensa e age por si mesmo, baseado no Evangelho de Cristo.
Jesus trabalha com a lógica da convicção, como auxiliar poderoso à lógica da certeza racional. Por isso, fez discípulos que chegaram a dar a vida por ele. Quem está convencido tem um motor dentro de si: puxa e arrasta os outros, formando redes de solidariedade e comunicação, num círculo virtuoso. Quem não está convencido, apenas sabe, não sai do lugar e desanima os outros, num processo de contaminação psicológica, comprometendo a ação do grupo, num círculo vicioso.
É necessário que a nossa pastoral faça as pessoas mudar de nível de pensamento: do mais simples para o mais complexo, do mais preconceituoso para o menos preconceituoso, do mais egoísta para o mais altruísta, do mais individual para o mais coletivo, etc. Numa caminhada crescente e progressiva. Assim, estaremos fazendo que as pessoas e os grupos se desenvolvam e se tornem humanos. Porque ninguém nasce humano, mas se faz humano. E quanto mais humano, mais perto de Deus.
10. Missionariedade. Jesus não parece ter fundado a Igreja para que ela se assentasse sobre si mesma, mas para que fosse servidora dos homens no mundo. (Cf. Mt 28,18-20; At 1,9-11; 2, 1-13.37-41) Senão não teria lhe dado o mandato missionário: vão e façam... Mas teria lhes dito: fiquem aqui...
A Igreja só é fiel a Cristo se for missionária (Cf. Paulo VI – Evangelii Nuntiandi 14), porque isso faz parte de sua essência e de sua missão primeira. Ora, se isso é verdade para o todo não o será para as partes? Então, toda pastoral só será fiel ao Cristo se for pensada de forma missionária, pensando os vazios e os espaços a serem evangelizados. Aqui a realidade se toca com o princípio de participação, de duas maneiras. Fazendo com que o outro tenha a oportunidade de experimentar a fé cristã (participação na Graça). E fazendo que outros possam ter oportunidade de evangelizar (participação na missão). Uma pastoral autêntica é uma pastoral que pensa os vazios de evangelização e se preocupa com os que não estão em nossas assembléias e em nosso atendimento diário.
Precisamos nos questionar de forma séria e metódica o que faz com que as pessoas se mantenham afastadas de nossas assembléias, reuniões e eventos. Aspectos físicos, litúrgicos, metodológicos, humanos e psicológicos deveriam ser seriamente estudados, alem dos sociológicos e políticos. Avaliações de desempenho seriam auxiliares que poderiam ajudar na nossa ação pastoral, questionando a eficácia e dando critérios concretos de ação.
Procurei basear os princípios em textos evangélicos, que sem dúvida, podem ter sua interpretação contestada. Apenas quis dar a minha visão deles. Aceito as correções e outras visões possíveis dos textos. Mas quero ressalvar aqui que não fiz uma leitura exegética ou histórica, o que extrapolaria, em muito, as pretensões deste texto.
Este artigo não foi escrito para dar receitas prontas de pastoral, como já se percebeu. Mas para iniciar uma discussão sobre a validade e os critérios a ser usados no julgamento de uma pastoral, a fim de que ela seja minimamente evangélica, competente e articulada. Sem querer cair em conceitos e pré-conceitos e sem estar muito presa a realidades particulares e regionais. O presente artigo serve apenas para problematizar e colocar parâmetros mínimos de avaliação e auto-análise da pastoral.
Sei que este foi apenas o chute inicial da bola e ficarei muito satisfeito se outro teólogo puder me contestar, contradizer e criticar. É no embate teológico e na discussão que a Igreja toda pode crescer e amadurecer, chegando mais perto do Evangelho do Cristo e mais próximo de ações geradoras do Reino. Espero ter contribuído um pouquinho com essas linhas.
Paulo F. Dalla-Déa
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autor do livro Atualização para catequistas de crisma,
Paulus, São Paulo1998.