ORIGEM DO MÉTODO DA LECTIO DIVINA
Estimado leitor, a minha preocupação neste artigo e a de apresentar-lhe o método da Leitura Orante com o qual você pode ler, meditar, rezar e contemplar o texto bíblico de modo que compreenda o que Deus disse para o povo na situação em que viviam e o que está querendo dizer para nós hoje. Vejamos mais de perto a origem desse método.
Um monge chamado Guigo, por volta dos anos 1.150, percebia que lendo o texto bíblico era possível reler o passado à luz do presente, trazendo uma grande contribuição para o futuro. Guigo sentia que a Palavra de Deus comprometia e que o conjunto dos livros que formam a Bíblia era tido dentro de uma unidade. Dentro dessa unidade, percebia que estavam presentes três níveis de compreensão: literário, histórico e o teológico. Cada um tem sua especificidade, o primeiro está mais próximo do texto, o segundo leva mais em consideração a situação histórica em que o texto foi escrito e o terceiro está diretamente relacionado com a mensagem de Deus.
Orígenes é o grande idealizador do termo Lectio Divina. Muitos traduzem Lectio Divina por leitura divina, outros por leitura orante. O que nos importa é o valor que esse método tem para nossa vida. A Lectio Divina é resultado da prática da leitura que os cristãos faziam e fazem da Bíblia. Essa prática usada pelos cristãos, já é um resquício da tradição das comunidades do Antigo Testamento. As comunidades liam os textos bíblicos que eram passados de geração em geração.
A grande contribuição de Guigo foi a de sistematizar os passos da Lectio Divina. Ele sugere que sejam seguidos quatro passos. O termo utilizado para cada momento é degrau. Com o intuito de partilhar a forma de como compreender melhor o texto bíblico, resolveu escrever um livrinho no qual intitulou "A Escada dos Monges". Escreve para outro monge dizendo: "certo dia, durante o trabalho manual, quando estava refletindo sobre a atividade do espírito humano, de repente se apresentou à minha mente, a escada dos quatro degraus espirituais: a leitura, a meditação, a oração e a contemplação. Essa é a escada dos monges, pela qual eles sobem da terra ao céu. É verdade, a escada tem poucos degraus, mas ela é de uma altura tão imensa e inacreditável que, enquanto a sua extremidade inferior se apóia na terra, a parte superior penetra nas nuvens e investiga os segredos do céu". E diz mais: "A leitura é o estudo assíduo das Escrituras, feito com espírito atento. A meditação é uma diligente atividade da mente que, com a ajuda da própria razão, procura o conhecimento da verdade oculta. A oração é o impulso fervoroso do coração para Deus, pedindo que afaste os males e conceda as coisas boas. A contemplação é uma elevação da mente sobre si mesma que, suspensa em Deus, saboreia as alegrias da doçura eterna".
A Lectio Divina supõe alguns princípios: a unidade da Escritura, atualidade ou encarnação da Palavra e a Fé em Jesus Cristo vivo na Comunidade.
Os quatro degraus pedem que o leitor fique atento à:
LEITURA: ler o texto várias vezes até criar uma maior familiaridade. Pronunciar bem as palavras. Entrar em contato com o texto utilizando-se de muita atenção, respeito, escuta... Sugerimos que essa leitura também seja criteriosa, evitando e até excluindo uma leitura fundamentalista. É preciso ver o texto dentro do seu contexto e origem.
MEDITAÇÃO: Esse passo é um convite para que atualizemos o texto e consigamos trazê-lo para dentro do horizonte da nossa vida e realidade. A meditação é um ótimo espaço para que se medite e reflita o que há de semelhante e diferente entre a situação do texto com o hoje. Depois, é importante resumir tudo o que foi ruminado numa frase. Essa frase o ajudará a recordar durante o dia o que foi meditado. É um prolongamento da meditação. Aos poucos vai havendo uma relação do que foi meditado com a vida de quem está meditando.
ORAÇÃO: Praticamente a oração está presente em todas as etapas. É importante que haja uma transparência no ato da oração e que o orante seja realista. Ele pode usar o momento tanto para louvor, ação de graças, súplica, pedido de perdão, rezar algum salmo, recitar preces já existentes. É importante que esse momento possa ajudá-lo na reflexão da frase escolhida.
CONTEMPLAÇÃO: depois de ler, meditar e orar o texto bíblico e sua realidade chegou a hora de contemplar todo esse percurso. "A contemplação nos ajuda a entender que Deus está presente na realidade". Pela contemplação é possível perceber a presença de Deus. E com isso somos convidados ao compromisso com a realidade.
Resumindo. A leitura responde a pergunta: O que diz o texto? A meditação responde: O que diz o texto para mim, para nós? A oração responde: O que o texto me faz dizer a Deus? E a contemplação ajuda a responder: Estou pronto para nova missão?
Os quatro degraus seguem um dinamismo onde a cada momento o leitor da Bíblia é convidado a recomeçar todo o processo. Quem deseja conhecer melhor esse método adquira o meu livro: Leitura Orante Caminho de Espiritualidade para Jovens, editado pelas Paulinas. Este livro se encontra na quarta edição e tem uma tradução para o Espanhol.
OS QUATRO DEGRAUS DA LECTIO DIVINA
Os quatro degraus da Lectio Divina são: Leitura, Meditação, Oração e Contemplação. Nem sempre é fácil distinguir um do outro. Por exemplo, o que alguns autores afirmam da leitura, outros o atribuem à meditação, e assim por diante. A causa desta falta de clareza está na própria natureza da Lectio Divina. Trata-se de um processo dinâmico de leitura, em que as várias etapas nascem uma da outra. É como a passagem da noite para o dia. Na hora do amanhecer, alguns dizem: "É noite ainda!" Outros dizem: "O dia já chegou!" Além disso, trata-se de quatro atitudes permanentes.
A atitude da leitura, por exemplo, continua também durante a meditação. As quatro atitudes existem e atuam juntas, durante todo o processo da Lectio Divina, embora em intensidade diferente conforme o degrau em que a pessoa ou a comunidade se encontra. O importante, nesta nossa reflexão, é que apareçam as características principais de cada uma dessas quatro atitudes que, juntas, integram a Lectio Divina.
Leitura Orante (texto)
Há muitas maneiras de ler a bíblia. Há quem vai ao texto por curiosidade a respeito da história das religiões ou por uma procura estritamente filosófica. Há quem lê a bíblia com olhar crítico de pesquisador, tentando compreender o texto em seu contexto político, social e cultural, oferecendo uma chave de interpretação a partir da história de ontem e como resposta aos desafios do nosso tempo. Entre as muitas formas de se aproximar da Sagrada Escritura, existe uma privilegiada à qual somos todos convidados: a lectio divina ou o exercício de leitura orante da Sagrada Escritura. (DGAE 2008/2010 – nº 63). Esta maneira de ler a bíblia é tão antiga como a própria Igreja. É a leitura que os cristãos faziam da Bíblia para alimentar a fé e a esperança; para animar a caminhada no amor fraterno e solidário.
Inicialmente, não havia uma formulação sistemática do método, era a própria Tradição que se transmitia de geração em geração. No século XII, Guigo, um monge, intuiu e sistematizou o processo de escuta e assimilação da palavra de Deus em quatro etapas ou degraus: Leitura, meditação, oração, contemplação.
A partir do século XIII houve um grande período em que a bíblia foi banida da vida da Igreja. Com isso, o método da leitura orante não foi mais transmitido e deixou de ser uma referência para a vida de fé no cotidiano das pessoas. Graças ao movimento bíblico antes do Concilio Vaticano II que culminou na Dei Verbum, e graças à reforma litúrgica com a introdução da língua falada pelo povo e dos lecionários, o exílio da Palavra foi interrompido. Sobre o Método da Leitura Orante a própria Dei Verbum o recomenda com grande insistência. Assim ela reapareceu no meio das comunidades por meio da leitura popular da Bíblia, começou a ser cultivada nas comunidades religiosas e foi retomada com mais intensidade pelos monges e monjas, reconhecidos historicamente como seus guardiões.
Contudo, em geral, o uso da Palavra na liturgia e mais especificamente nas homilias, bem como na meditação pessoal de tantas pessoas que buscam aprofundar seu caminho de fé, não deixa de causar certa preocupação. A avalanche de roteiros homiléticos, nem sempre resultante de uma leitura assídua e pessoal, muitas vezes, forçando a atualização imediata, favorece certa passividade diante dos textos propostos, dispensando ministros/as e assembléia de um esforço pessoal necessário para chegar a uma compreensão mais profunda da palavra de Deus. Se o anúncio do(a) leitor(a) ou pregador(a) não passou pelo crivo da meditação pessoal em sua sequência de leitura, meditação e oração, dificilmente a assembléia será tocada pela Palavra, que é viva e eficaz e não volta sem produzir o seu fruto.
Alegramo-nos hoje com as perspectivas que se abriram a partir do documento de Aparecida (2007); das Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja do Brasil (2008-2010); e do sínodo sobre a Palavra de Deus na vida e missão da Igreja (2008) que nos chamam a atenção para a necessidade de uma leitura continua e assídua da Bíblia apontando a Lectio Divina como método mais eficaz para ler e compreender a Sagrada Escritura. Neste sentido relembramos a seguir os passos do método. Antes de tudo, é importante ir para a leitura tendo o texto escolhido. Não é aconselhado abrir a Bíblia aleatoriamente nem passar de um texto a outro, mas de fixar-se em determinado trecho. O lecionário cotidiano oferece um guia precioso neste sentido. Muito recomendada também é a leitura continua de um livro da Escritura, de preferência seguindo o ano litúrgico, por exemplo, o livro de Isaías no advento, ou o evangelho de Marcos no tempo comum do ano B e assim por diante.
Antes de começar a leitura, colocar-se à disposição da Palavra, prestar atenção aos próprios sentimentos, acalmar-se de toda agitação. Em atitude de fé invocar o Espírito, pois é ele que pode garantir docilidade e abertura interior.
a) A leitura - O primeiro passo é determinante. Leitura atenta e perseverante do texto com uma boa dose de disciplina que inclui lugar e tempo marcados, texto determinado, regularidade... Ler devagar e com atenção. Ler como se fosse pela primeira vez e levar em conta o estilo literário, os tipos de linguagens usadas pelos autores dos livros (saga, poesia, evangelho, apocalipses, novelas, biografias, etc.). Ler levando em consideração que o texto não foi escrito para mim, ou para resolver problemas para as nossas comunidades hoje; ele foi escrito para dar respostas aos problemas que as comunidades estavam enfrentando na época do autor. Por isso devo levar em consideração a situação sócio-política-econômica-religiosa-cultural da época em que o texto foi escrito e levar em consideração as imagens, as ações, os personagens (homens, mulheres, órfãos, estrangeiros, viúvas, doentes, crianças, pobres...).
Há técnicas e perguntas que podem ajudar neste primeiro passo: Quem escreveu? Quando? Onde? Por quê? Qual a mensagem que o autor queria dar para as comunidades do seu tempo? Outra técnica é: sublinhar palavras ou frases que chamam a atenção, transcrever o texto, prestar atenção nos verbos e comparar diversas traduções, prestando atenção nas diferenças. Se durante a leitura ocorrer a lembrança de outro texto bíblico, ou de um fato da vida, seguir atentamente o que vem à memória.
a) A leitura - A leitura quando bem feita, como a lectio divina propõe, ajuda a superar o fundamentalismo. Quando malfeita faz só aumentá-lo. O fundamentalismo é uma grande tentação que se instalou na mente de muita gente. Ele separa o texto do resto da vida e da história do povo e o absolutiza como a única manifestação de Deus. A vida, a história do povo, a comunidade, já não teria mais nada a dizer sobre Deus e a sua vontade. O fundamentalismo anula a ação da Palavra de Deus na vida. É a ausência total de consciência critica. Ele distorce o sentido da Bíblia e alimenta o moralismo, o individualismo e o espiritualismo na interpretação dela. E uma visão alienada que agrada aos opressores do povo, pois ela impede que os oprimidos tomem consciência da iniquidade do sistema montado e mantido pelos poderosos. Superar o fundamentalismo só é possível à medida que através da leitura, o leitor consiga ver dentro de seu contexto de origem e, ao mesmo tempo, perceber nele o reflexo da situação humana, tão conflitiva, confusa e controvertida, que hoje vivemos. Mas é bom ter sempre em mente que a Bíblia primeiramente foi vivida, contada e recontada, cantada e rezada, depois escrita. Tudo o que está na Bíblia foi escrito bem mais tarde do acontecido.
b) A meditação - O segundo passo é a meditação, tempo de repetir e mastigar, de sentir o sabor ou, como dizia os antigos, de ruminar a palavra. Com a leitura atenta e perseverante emerge também o que o texto diz para mim, neste momento da vida. Como no encontro de Jesus com os discípulos de Emaús, Jesus relembra as Escrituras para elucidar os acontecimentos, fazendo emergir o sentido oculto dos fatos. É este encontro entre a Palavra e a vida que faz o coração arder. Assim a meditação tem como objetivo atualizar o texto para os dias de hoje e isso eu faço perguntando: Este texto que acabei de ler pode trazer luz, esperança, novo alento para mim e para a minha comunidade hoje? O que há de semelhante e diferente entre a situação do texto a minha situação ou a situação da minha comunidade?
A luz desprendida da Palavra provoca o confronto, gera a crise, ilumina, leva ao discernimento e à conversão... Mas nada deve ser forçado, é simplesmente permitir que a palavra acenda a lâmpada do coração. Há seu tempo ela dará frutos ... A Palavra requer uma atitude de gratuidade, de despojamento, de total abertura, afinal estamos diante de uma presença que se dá a conhecer à medida que nos abrimos à sua vinda.
c) A oração - Há uma força vital que emana da própria escritura, quando esta é levada a sério pela leitura assídua e pela meditação. Mais que uma força é uma presença que fala aos nossos sentimentos e faz brotar de dentro do coração, tocado pela Palavra, uma resposta de amor em forma de agradecimento, de pedido de perdão, de intercessão... Como no episódio de Emaús eles sentaram à mesa para dar graças... Orígenes lembra: "O que não se consegue com o próprio esforço deve ser pedido na oração".
d) A contemplação- O último degrau da leitura orante é a contemplação, ponto de chegada e novo começo. Contemplar é fazer silêncio para perceber a ação que Deus operou em cada um de nós através do texto. A contemplação nos ajuda a entender o que Deus está querendo de nós através do texto. E com isso somos convidados a assumir um compromisso de vida nos perguntando: que ação evangélica esse texto esta me sugerindo? Mas antes de responder essa pergunta é preciso que nos ocupemos de que a leitura do texto por si só, não abre os olhos. Não basta conhecer a Palavra de Deus. É preciso colocá-la em prática. A leitura, ou seja, a teoria, só faz animar, estimular, dar coragem, arder o coração. É preciso ir mais adiante, e tudo isso ser experimentado na prática, assumindo um compromisso de vida, pois é a prática que abre os olhos (Mt 5, 24; Lc 6,47-48).
1. A leitura: conhecer, respeitar, situar.
A leitura é o primeiro passo para se conhecer e amar a Palavra de Deus. Não se ama o que não se conhece. É também o primeiro passo do processo da apropriação da Palavra: ler, ler, ler! Ler muito para familiarizar-se com a Bíblia; para que ela se tome nossa palavra, capaz de expressar nossa vida e nossa história, pois ela "foi escrita para nós que tocamos o fim dos tempos" (l Cor 10,11). Esse processo de reapropriação da Palavra pelo povo está em andamento nas Comunidades.
A leitura é uma atividade bastante elementar: ler, pronunciar bem as palavras, se possível em voz alta Este primeiro passo é muito importante e muito exigente. Não pode ser feito de maneira superficial. Para muitos, a Bíblia é o meio principal de alfabetização e funciona como gramática. Pela leitura freqüentamos a Bíblia como se freqüenta um amigo.
Há uma semelhança muito grande entre a maneira de se conviver com o povo e com a Bíblia. Os dois exigem o máximo de atenção, respeito, amizade, entrega, silêncio, escuta. Os dois, tanto o pobre como a Bíblia, não se defendem logo, quando são agredidos ou manipulados, mas os dois acabam vencendo o agressor pelo cansaço. A leitura da Bíblia ajuda a criar em nós os olhos certos para ler a vida do povo e vice-versa.
A leitura, assim como a convivência com povo pobre, não pode depender do gosto do momento, mas exige da pessoa uma determinação constante e contínua. A leitura deve ser perseverante e diária. Exige ascese e disciplina.
Não ser interesseira, mas deve ser desinteressada, gratuita, em vista do "Reino e do bem do povo". A leitura é ponto de partida, não é ponto de chegada. Faz o leitor pisar no chão. Prepara o leitor e o texto para o diálogo da meditação. Para que a meditação não seja fruto de uma fantasia irreal, mas tenha fundamento no texto e na realidade, é necessário que a leitura se faça com critério e atenção. “Estudo assíduo, feito com espírito atento, dizia Guigo. Através de um estudo imparcial, a leitura impede que o texto seja manipulado e reduzido ao tamanho da nossa idéia, e faz com que ele possa ser parceiro autônomo no nosso dialogo com Deus, pois ela estabelece o sentido que o texto tem em si, independente de nós. Assim, a leitura cria no leitor uma atitude critica criteriosa e respeitosa diante da Bíblia”. E aqui, na leitura, que entra a contribuição da exegese para o bom andamento da Lectio Divina.
A leitura, entendida como estudo crítico, ajuda o leitor a analisar o texto e a situá-lo em seu contexto de origem. Esse estudo tem três níveis:
a) Literário: aproximar-se do texto e, através de perguntas bem simples, analisar o seu tecido: quem? O quê? Onde? Por quê? Quando? Como? Com que meios? Como o texto se situa dentro do contexto literário do livro de que faz parte?
b) Histórico: através do estudo do texto, atingir o contexto histórico em que surgiu o texto ou em que se deu o fato narrado pelo texto, e analisar a situação histórica em dimensões como: econômica, social, política, ideológica, afetiva, antropológica e outras. Trata-se de descobrir os conflitos que estão na origem do texto, nele se refletem para, assim, perceber melhor a encarnação da Palavra de Deus na realidade conflitava da historia humana, tanto deles como nossa.
c) Teológico: descobrir, através da leitura do texto, o que Deus tinha a dizer ao povo naquela situação histórica; o que Deus significava para aquele povo como Ele se revelava; como o povo assumia e celebrava a Palavra do Senhor.
O estudo científico do texto não é o fim da leitura. É apenas um meio para se chegar ao fim. A intensidade do uso da exegese na Lectio Divina depende não do exegeta, mas das exigências e circunstâncias dos leitores. Para um tipo de parede usa-se uma broca mais resistente do que para outro. Mas o objetivo é o mesmo: furar a parede. Não se usa broca de mármore para furar parede de papelão! O objetivo da leitura é este: furar a parede da distância entre o ontem do texto e o hoje da nossa vida, a fim de poder iniciar o diálogo com Deus na meditação. Qual a broca que fura essa parede? De um lado, é "o estudo assíduo, feito com espírito atento" (Guigo). De outro, e "a própria experiência adquirida da vida" (Cassiano). Paulo VI dizia que se deve "procurar uma certa conaturalidade entre os interesses atuais (hoje) e o assunto do texto (ontem), para que se possa estar disposto a ouvi-lo (diálogo)" (25-9¬1970). Com outras palavras a broca é esta: aprofundar tanto o texto de ontem quanto a nossa experiência de hoje! Às vezes, a Lectio Divina não traz resultado e o texto não fala, não por falta de estudo do texto, mas sim por falta de aprofundamento critico da nossa própria experiência de vida, hoje, aqui, na América Latina.
A leitura quando bem feita, ajuda a superar o fundamentalismo. Quando malfeita faz só aumentá-lo. O fundamentalismo é uma grande tentação que se instalou na mente de muita gente. Ele separa-o texto do resto da vida e da historia do povo e o absolutiza como a única manifestação de Deus. A vida, a história do povo a comunidade, já não teria mais nada a dizer sobre Deus e a sua vontade. O fundamentalismo anula a ação da Palavra de Deus na vida. E a ausência total de consciência critica. Ele distorce o sentido da Bíblia e alimenta o moralismo, o individualismo e o espiritualismo na interpretação dela. E uma visão alienada que agrada aos opressores do povo, pois ela impede que os oprimidos tomem consciência da iniqüidade do sistema montado e mantido pelos poderosos. Superar o fundamentalismo só é possível a medida que através da leitura, o leitor consiga ver dentro de seu contexto de origem e, ao mesmo tempo, perceber nele o reflexo da situação humana, tão conflitiva, confusa e controvertida, que hoje vivemos.
Qual o momento de se passar da Leitura para a meditação? É difícil precisar o momento exato em que a natureza passa da primavera para o verão. É diferente, a cada ano, em cada país. Mas existem alguns critérios. O objetivo da leitura é ler e estudar o texto a fé que ele, sem deixar de ser ele mesmo, se torne espelho de nós mesmos e nos reflita algo da nossa própria experiência de vida. A Leitura deve familiarizar-nos com o texto a ponto de ele se tornar nossa palavra. Cassiano dizia: "Penetrados dos mesmos sentimentos em que foi escrito o texto, nos tornamos, por assim dizer, os seus autores e aí, como que de repente, nos damos conta de que, por meio dele, Deus está querendo falar conosco e nos dizer alguma coisa. Nesse instante, dobramos a cabeça, fazemos silêncio e abrimos o ouvido: "Vou ouvir o que o Senhor nos tem a dizer!" (Sl 85, 9) É nesse momento que a Leitura se transforma em meditação e que se passa para o segundo degrau da Lectio Divina.
2. A meditação: ruminar, dialogar, atualizar
A leitura respondeu à pergunta: "O que diz o texto? A meditação vai responder à pergunta: "O que diz o texto para mim, para nós? A questão central que se coloca daqui para a frente é esta: o que é que Deus, através desse texto, tem a dizer hoje, aqui na América Latina, a nós, religiosos que para obedecer a voz do Evangelho consagramos nossa vida a Deus e ao povo? A meditação indica o esforço que se faz para atualizar o texto e trazê-lo para dentro do horizonte de nossa vida e realidade, tanto pessoal quanto social. Dentro da dinâmica da Lectio Divina a meditação ocupa um lugar central.
Guigo dizia: "A Meditação é uma diligente atividade da mente que, com a ajuda da própria razão, procura o conhecimento da verdade oculta. Qual é esta verdade oculta? Através da leitura descobrimos como o texto situava-se no contexto daquela época. Qual a posição que tomava nos conflitos, qual a mensagem que tinha para o povo. De lá para cá a situação mudou, o contexto é outro, os conflitos são diferentes. No entanto, a fé nos diz que esse texto apesar de ser de outra época e de outro contexto, tem algo a nos dizer hoje. Nele deve existir um valor permanente que quer produzir no presente a mesma conversão ou mudança que produziu naquele tempo. Ora, a verdade oculta de que falava Guigo é este valor permanente, esta mensagem que lá existe para o nosso contexto e que deve ser descoberta e atualizada pela meditação”. Como fazer a meditação?
Uma primeira forma de se realizar a meditação é sugeri da pelo próprio Guigo. Ele manda usar a mente e a razão para poder descobrir a "verdade oculta". Entra-se em dialogo com o texto, com Deus, fazendo perguntas que obrigam a usar a razão e que procuram trazer o texto para dentro do horizonte da nossa vida.
Medita-se refletindo, interrogando: o que há de semelhante e de diferente entre a situação do texto e a nossa de hoje? Quais os conflitos de ontem que existem hoje? Quais dentre eles são diferentes? O que a mensagem deste texto diz para a nossa situação? Que mudança de comportamento ele sugere para mim que vivo na América latina? E para nós, religiosos, em que ponto ele nos condena? O que ele quer fazer crescer em mim, em nós? Etc.
Outra maneira de se fazer a meditação é repetir o texto, ruminá-lo, mastigá-lo até descobrir o que ele tem a nos dizer. É o que Maria fazia quando ruminava as coisas em seu coração (Lc 2,19.51). E o que recomenda o salmo ao justo: "Meditar dia e noite na lei do Senhor" (Sl 1,2). E o que Isaías define com tanta precisão: "Sim, Iahweh, o teu nome e a lembrança de Ti resumem todo o desejo da nossa alma" (Is 26,8).
Após ter feito a leitura e ter descoberto o seu sentido para nós é bom procurar resumir tudo numa frase, de preferência do próprio texto bíblico, para ser levada conosco na memória e ser repetida e mastigada durante o dia, até se misturar com o nosso próprio ser. Através dessa ruminação, nós nos colocamos sob o julgamento da Palavra de Deus e deixamos que ela nos penetre, como espada de dois gumes (Hb 4,12), pois água mole em pedra dura tanto bate até que fura! Ela vai julgando as disposições e intenções do coração. E não há criatura oculta à sua presença. Tudo está nu e descoberto aos olhos daquele a quem devemos prestar contas (Hb 4,12-13). Nós, religiosos, nos escondemos atrás de mascaras e ídolos, ideologias e convenções, doutrinas repetidas e tradições humanas (cf Mc 7,8-13).
Pela meditação ou ruminação, a Palavra de Deus vai entrando aos poucos, vai tirando as máscaras, vai revelando e quebrando a alienação em que vivemos, devolvendo-nos a nós mesmos, para que nos tomemos uma expressão viva da palavra ouvida, meditada e ruminada.
Cassiano aponta outro aspecto importante da meditação, como conseqüência da ruminação. Ele diz: Instruídos por aquilo que nós mesmos sentimos, Já não percebemos o texto como algo que só ouvimos, mas sim como algo que experimentamos e tocamos com nossas mãos; não como uma historia estranha e inaudita, mas como algo que damos à luz desde o mais profundo do nosso coração como se fossem sentimentos que formam parte do nosso próprio ser. Respeitamo-lo: não é a leitura que nos faz penetrar no sentido das palavras, mas sim “a própria experiência nossa adquirida anteriormente na vida de cada dia" (Collationes X, 11). Aqui já nem parece haver mais diferença entre Bíblia e vida, entre a Palavra de Deus e a nossa palavra. Ora, conforme Cassiano, é nesta quase identificação nossa com a palavra da Bíblia que está o segredo da percepção tio sentido que a Bíblia tem para nós. Cassiano diz que a percepção do sentido do texto não vem do estudo, mas da experiência que nós mesmos temos da vida. O estudo coloca os fios, a experiência adquirida gera a força, a meditação aperta o botão, faz a força correr pelos fios e acende a lâmpada do texto. Tanto o fio como a força, ambos são necessários para que haja luz. A vida ilumina o texto, o texto ilumina a vida.
A meditação também aprofunda a dimensão pessoal da Palavra de Deus. Uma palavra tem valor não só pela idéia que comunica, mas também pela pessoa que a pronuncia e pela maneira como é pronunciada. Na Bíblia, quem nos dirige a Palavra é Deus, e ele o faz com muito amor. Uma palavra de amor desperta forças, libera energias, recria a pessoa. Meditando a Palavra de Deus, o coração humano se dilata até adquirir a dimensão do próprio Deus, que pronuncia a Palavra. Aqui aparece a dimensão mística da Lectio divina. Um lavrador de Pernambuco dizia: "Fui notando que se a gente vai deixando a palavra de Deus entrar dentro da gente, a gente vai se divinizando. Assim, ela vai tomando conta da gente e a gente não consegue mais separar o que é de Deus e o que é da gente. Nem sabe muito bem o que é Palavra dele e palavra da gente. A Bíblia fez isso em mim". (por trás da Palavra n.46).
Pela leitura se atinge a casca da letra e se tenta atravessá-la para, na meditação, atingir o fruto do espírito (S. Jerônimo). O Espírito age dentro da escritura (2Tm 3,16). Através da meditação, ele se comunica a nós, nos inspira, cria em nós os sentimentos de Jesus Cristo (Ef 2,5), ajuda-nos a descobrir o sentido pleno das palavras de Jesus (Jo 16,13), faz experimentar que sem Ele nada podemos fazer (Jo 15,5), ora em nós com gemidos inefáveis (Rm 8,26) e gera em nos a liberdade (2Cor 3,17). E o mesmo Espírito que enche a vastidão da terra (SI 1,7). No passado, ele animava os Juízos e os Profetas. No presente, ele nos ajuda a descobrir o sentido profético da história do nosso povo, que se organiza e luta por uma sociedade mais justa. A meditação nos ajuda a descobrir o sentido espiritual, isto é, o sentido que o Espírito de Deus quer comunicar hoje à sua Igreja através do texto da Bíblia.
A meditação é uma atividade pessoal e também comunitária. A partilha do que cada um sente, descobre e assume no contato com a Palavra de Deus é muito mais do que só a soma das palavras de cada um. A busca em comum faz aparecer o sentido eclesial da Bíblia e fortalece todo o sentido comum da fé. Por isso é tão importante que a Bíblia seja lida, meditada, estudada e rezada não só individualmente, mas também e, sobretudo em comum. Pois se trata do livro de cabeceira da Igreja, da Comunidade.
Qual o momento de se passar da meditação para a oração? Não é fácil dizer quando, exatamente, uma pessoa passa da juventude para a idade adulta. Mas existem alguns critérios. A meditação atualiza o sentido do texto até ficar claro o que Deus está pedindo de nós, religiosos, que vivemos aqui na América Latina. Ora, quando fica claro que Deus pede, está chegando o momento de se perguntar: "E agora, o que vou dizer a Deus? Assumo ou não assumo?" Quando fica claro o que Deus pede, fica clara também a nossa incapacidade e a nossa falta de recursos. E o momento da súplica: "Senhor, levanta-te! Socorre-nos" (Sl 44,27). Quando fica claro que Deus nos interpela através do irmão explorado e necessitado e que Fiel ouve o grito dos pobres, está chegando o momento de unir nossa voz ao grito dos pobres, para que Deus, finalmente, ouça o seu grito e venha libertar o seu povo. Com outras palavras, a meditação é semente de oração. Basta praticá-la e ela, por si mesma, se transforma em oração.
3. A oração: suplicar, louvar, recitar.
A atitude de oração está presente desde o começo da Lectio Divina. No início da leitura invoca-se o Espírito Santo. Durante a leitura sempre aparecem momentos de oração, pois, por si mesma, transforma-se em prece. Mas dentro da dinâmica da Lectio Divina, apesar de tudo ser regado com oração, deve haver um momento de especial, próprio para a prece. Esse momento é o terceiro degrau, o da oração. Através da leitura, procuramos descobrir: "O que o Texto diz"? A meditação aplica a Leitura em nossa vida: "O que o texto diz para nós”? Até agora era Deus quem falava. Chegou o momento da oração propriamente dita: "O que o texto me faz dizer, nos faz dizer a Deus"?
A atitude da oração diante da palavra de Deus deve ser como aquela de Maria, que disse: "Faça-se em mim segundo a tua palavra" (Lc. 1,38). A palavra que Maria ouviu não era uma palavra da Bíblia, mas sim uma palavra percebida nos fatos da vida, por ocasião da visita do anjo. Maria foi capaz de percebê-la, porque a ruminação (cf. Lc. 2,19.51) tinha purificado o seu olhar e o seu coração. Os puros de coração percebem a ação de Deus nos fatos (cf. Mt 5,8). Rezando e cantando (cf. Lc 1,46-56), eles a encarnam na vida. Essa atitude de oração deve ser realista e não ingênua, o que se alcança pela leitura deve nascer pela experiência do nosso nada e dos problemas reais da vida, o que se alcança pela meditação. Deve tomar-se uma atitude permanente de vida, o que se alcança na contemplação.
A oração provocada pela meditação inicia por uma atitude de admiração silenciosa e de adoração ao Senhor. A partir daí, brota a nossa resposta à palavra de Deus. Desde os tempos do novo testamento, os cristãos descobriram que nós não sabemos rezar como convém. É o próprio espírito que ora em nós (Rm 8,26). Quem melhor fala a Deus é o próprio Deus. Por isso a oração dos salmos ainda é a melhor oração. O próprio Jesus usou várias vezes os salmos e orações da Bíblia. Ele é o grande cantor dos salmos (St. Agostinho). Com Ele e nele, os cristãos prolongam a Lectio Divina pela oração pessoal, pela oração litúrgica e pelas preces da igreja.
Nesta grande comunhão eclesial é importante que a palavra de Deus suscite em nós, uma intensa vida de oração individual. Dependendo do que se ouviu da parte de Deus na leitura e na meditação, a resposta pode ser de louvor ou de ação de graças, de súplica ou de perdão, pode ser até de revolta ou de imprecação, como foi a resposta de Jó, de Jeremias e de tantos salmos. Como na meditação é importante que esta oração espontânea não seja só individual, mas também tenha sua expressão comunitária, em forma de partilha.
A oração, provocada pela meditação, também pode ser recitação de preces já existentes. Neste ponto o oficio Divino presta urna grande ajuda. Ele espalha a leitura através das horas do dia. Infelizmente, a Liturgia das Horas que, nos primeiros séculos, alimentava a oração pessoal do Povo de Deus ficou restrita aos monges e clérigos. O monge ouvia a Palavra, memorizava-a e a levava consigo para ruminá-la nos intervalos, durante o trabalho manual. Além disso, urna das primeiras tarefas do monge, ao entrar no mosteiro, era decorar os salmos para que servissem de porta-voz e apoio no seu diálogo com Deus.
Hoje em dia, já não podemos repetir o esquema dos antigos monges. Os tempos mudaram. Fica, porém, a inspiração, o modelo e o desafio: decorar algum salmo para as horas de precisão; carregar consigo alguma frase da Bíblia para ruminá-la ao longo do dia, nos intervalos, durante o trabalho, no ônibus, no roçado; criar um esquema de vida, adaptado ao nosso modo de viver, que alcance para nós o mesmo objetivo.
Além do que já vimos, a Lectio Divina procura acentuar um .outro aspecto muito importante da oração, a saber, a sua ligação bem concreta com a vida, com a caminhada e a luta do povo. É um assunto delicado e difícil, que exige uma breve reflexão para situá-lo.
A Palavra de Deus vale não só pela idéia que transmite, mas também pela força que comunica. Não só diz, mas também faz. Um exemplo concreto é o sacramento: a palavra "Isto é o meu corpo!" faz o que diz. Na Criação, Deus fala e as coisas começam a existir (Sl 148,5; Gn 1,3). O povo judeu, muito mais do que nós hoje tinha sensibilidade para valorizar esses dois aspectos da palavra e mantê-los unidos. Eles diziam na língua deles: dabar, o que significava, ao mesmo tempo, palavra e coisa: diz e faz, anuncia e traz; ensina e anima, ilumina e fortalece, luz e força, Palavra e Espírito.
Ora, a Lectio Divina, que tem suas raízes no povo judeu, também valoriza os dois aspectos e os mantém unidos. Pela leitura, procura descobrir a idéia, a mensagem, que a palavra transmite e ensina. Pela meditação, e, sobretudo pela oração, ela cria o espaço onde a palavra faz o que diz, traz o que anuncia, comunica a sua força e nos revigora para a caminhada. Os dois aspectos não podem ser separados, pois ambos existem unidos na unidade de Deus, no Seio da Santíssima Trindade.
Desde toda a eternidade, o Pai pronuncia a sua Palavra e coloca nela a força do seu Espírito. A Palavra se fez carne em Jesus, no qual repousa a plenitude do Espírito Santo.
Infelizmente, na pratica pastoral, estes dois aspectos da Palavra estão separados. De um lado, os movimentos carismáticos; de outro lado, os movimentos de libertação. Os carismáticos têm muita oração, mas muitas vezes carecem de visão critica. Às vezes, não fazem a leitura como deve ser feita: não situam o texto dentro do seu contexto de origem e, por isso mesmo, tendem para uma interpretação Fundamentalista, moralizante e individualista da Bíblia. Por isso, a sua interpretação e oração, muitas vezes carecem de fundamento real no texto e na realidade. Os movimentos de libertação têm muita consciência crítica, fazem boa leitura, mas, às vezes, carecem de perseverança e de fé, quando se trata de enfrentar situações humanas que, dentro da análise científica da realidade, em nada contribuem para a transformação da sociedade. Às vezes, eles têm certa dificuldade para enxergar a utilidade de longas horas gastas em oração sem resultado imediato. A Lectio Divina, quando bem conduzida nos seus vários passos, talvez possa ser uma ajuda para corrigir as falhas e aproximar o que não deveria estar separado.
Finalmente, na oração reflete-se ainda o itinerário pessoal de cada um no seu caminhar em direção a Deus e no seu esforço de esvaziar-se de si para dar Lugar a Deus, ao irmão, ao pobre, à comunidade. E aqui que se situam as noites escuras com suas crises e dificuldades, com seus desertos e tentações, rezadas, meditadas e enfrentadas à luz da Palavra de Deus (Mt 4,1-11).
Qual o momento de se passar da oração para a contemplação? Aqui não há resposta. A contemplação é o que sobra nos olhos e no coração, depois que a oração termina. Ela fica para além do caminho da Lectio Divina, pois é o seu ponto de chegada. Por ser o ponto de chegada é também ponto de partida de um novo começo de Leitura, meditação, oração. A contemplação é como a fruta da árvore: já estava dentro da semente. Vai crescendo aos poucos, amadurece lentamente.
4. A Contemplação: enxergar, saborear, agir
A contemplação é o último degrau da Lectio Divina. É o seu ponto de chegada. Cada vez, porém, que se chega ao último degrau, este se toma patamar para um novo começo. E assim, através de um processo sempre renovado de leitura, meditação, oração, contemplação, vamos crescendo na compreensão do sentido e da força da Palavra de Deus. Nunca se chegará ao ponto de poder dizer: "Agora realizei todo o objetivo da Palavra de Deus na minha vida!", pois sempre haverá pela frente um olhar mais penetrante, uma leitura mais profunda, uma meditação mais exigente, urna oração mais engajada, uma contemplação mais transparente. Até todos os véus caírem, até que a realidade toda seja
transformada e chegue à plenitude do Reino. Mas, até lá, ainda resta um longo caminho (1Rs 19,7). A contemplação reúne em si todo o caminho percorrido da Lectio Divina: até agora, você se colocou diante de Deus, leu e escutou a Palavra, estudou e descobriu o seu sentido; com ele você se comprometeu e começou a ruminá-lo para que entrasse na dinâmica da sua própria vida e passasse da cabeça para o coração; você transformou tudo isto em oração diante de Deus como projeto para a sua vida; o sal da Palavra desapareceu na sua vida e lhe deu um novo sabor; o pão da Palavra foi mastigado e lhe deu força para uma nova ação. Agora, no fim, tendo tudo isto na mente e no coração, você começa a ter um novo olhar para observar e avaliar a vida, os fatos, a história, a caminhada das comunidades, a situação do povo na América Latina, os pobres. E o olhar de Deus sobre o mundo, que assim se comunica e se esparrama. Este novo olhar é a contemplação. Novo olhar, novo sabor, nova ação! Ela envolve todo o ser humano. Santo Agostinho dizia que, através da leitura da Bíblia, Deus nos devolve o olhar da contemplação e nos ajuda a decifrar o mundo e a transformá-lo, para que seja, novamente, uma revelação de Deus, uma teofania. A contemplação assim entendida é o contrario da atitude de quem se retira do mundo para poder contemplar a Deus.
A contemplação como resultante da Lectio Divina é a atitude de quem mergulha dentro dos fatos para descobrir e saborear neles a presença ativa e criativa da Palavra de Deus e, além disso, procura comprometer-se com o processo de transformação que esta Palavra está provocando dentro da história. A contemplação não só medita a mensagem, mas também a realiza; não só ouve, mas coloca em prática. Não separa os dois aspectos: diz e faz; ensina e anima; é luz e força.
Para os fundamentalistas, a Palavra de Deus está só e unicamente na Bíblia. O mundo, a vida, a história, tudo isto é antro de perdição. Só se salva quem aplica a Palavra da Bíblia na sua vida e se afasta do mundo, da política, da luta do povo, dos problemas do bairro etc. A contemplação corrige este defeito dos nossos lhos e nos converte. Faz descobrir que não é Deus que esta ausente da realidade. Nós é que não percebemos a sua presença! Nós é que somos cegos (cf. Is 42,19). A Lectio Divina pinga um colírio, abre os olhos dos cegos e os faz enxergar. Tira o véu e ajuda a descobrir o desenrolar do projeto de Deus dentro da historia que hoje vivemos, a perceber como Cristo, centro de tudo, nos passar do nosso antigo testamento para o Novo testamento. Faz descobrir o sentido das coisas, faz comprometer-se com o Reino.
A contemplação, é o ponto final da escada, é o patamar para um novo começo. E como subir numa torre muito alta. Você alcança o primeiro patamar por uma escada de três lances: leitura, meditação e oração. Na janela do primeiro patamar, você descansa e contempla a paisagem. Depois, você continua a subida até o segundo patamar por uma outra escada também de três lances: leitura, meditação e oração. Na janela do segundo patamar, você descansa mais um pouco e contempla, de novo, a mesma paisagem. Ela ficou mais bonita! Dá vontade de subir mais para observá-la melhor.
E assim você vai subindo, sempre mais, num processo que não termina nunca. Vai lendo sempre a mesma Bíblia, olhando sempre a mesma paisagem. A medida que sobe, a visão se aprofunda, a paisagem fica mais ampla, mais real. Você enxerga a sua casa, o seu povoado.
Encontra lá no meio a sua vida, a história de suas andanças. E assim vai subindo, junto com os companheiros, trocando idéias, ajudando-se uns aos outros para não deixar ninguém para trás. E assim vamos subindo, até que cheguemos a contemplar Deus face a face (1Cor 13,12) e, em Deus, os irmãos, a realidade, a paisagem, numa visão completa e definitiva. A contemplação é tudo isto, e muito mais! "Muita luz, nuvem limpa, pé de pau florido e o povo alegre, cantando. Eu acho que é um pedacinho da ressurreição, mesmo em sonho. A gente acordado não dá pra ver esse desafogo da ressurreição porque tem sempre as sombras do sofrimento e da luta... Vai demorar... Mas um dia eu sei que a ressurreição da felicidade, melhor que o sonho, vai chegar para o povo. Um dia a ressurreição Vai baixar no nosso chão" Palavras de um pedreiro! Demos graças a Deus!
DEZ PASSOS PEDAGÓGICOS PARA A PRÁTICA DA LEITURA ORANTE DA BÍBLIA.
1º PASSO: Procure um lugar agradável e acomode-se e com os olhos fechados. Respire profundamente e devagar várias vezes, sentindo toda a tensão saindo do corpo e Deus ocupando o lugar central do seu ser. Coloque-se na presença d'Ele, dando alguns minutos para que a "poeira" de seus pensamentos e suas ações se assente um pouco. Respire paz, tranqüilidade, harmonia, segurança... inspire, insegurança, medo, tensão...
2º PASSO. Através de um canto, um mantra conhecido ou uma oração, peça as luzes do Espírito Santo para esse tempo de oração. Sem a força e o auxilio do Espírito Santo de Deus, nosso esforço será inútil.
3º PASSO. Agora abra a sua Bíblia e comece a ler o texto indicado. É preciso ler nas linhas e nas entrelinhas, pois o autor do texto Bíblico ao escrevê-lo, não estava pensando em mim, em você ou nos problemas do nosso século. Ao escrever o texto, ele estava dando uma resposta a um problema concreto que a comunidade dele estava enfrentando. Â partir do texto indicado procure descobrir qual é esse problema. O que estava acontecendo na comunidade do autor que o levou a escrever esse texto?
4º PASSO. Esse passo, a meditação, quer atualizar o que se leu, buscando o seu sentido para a nossa vida de hoje, aqui no Brasil, no lugar onde moramos, e portanto, vai responder a pergunta: O que diz o texto para mim, para nós? O que esse texto tem de semelhante e de diferente com a nossa vida? Com a nossa comunidade? O que tem a ver com o nosso país?
5º PASSO. Oração é entrar em sintonia e diálogo com Deus dando uma resposta solicitada pela Palavra lida e meditada que nos foi dirigida por Ele. Agora é o momento de nos colocar em comunhão íntima com Ele e expressar nossos sentimentos, angústias, apreensões, alegrias e sonhos que por ventura surgiram durante a leitura e a meditação. Você não deve se preocupar em falar muito e em preparar palavras bonitas, que fórmula usar. Fale com espontaneidade, simplicidade e naturalidade e conte a Deus Pai tudo o que o seu coração sentiu e experimentou a partir das descobertas feitas até agora.
6° PASSO. A contemplação introduz-nos numa "conversa tranqüila com Deus", sem outro desejo a não ser o de permanecer ao seu lado. Olhar e sentir-se olhado por Ele, num sentimento de adoração, escuta e silêncio. Esta presença e esta proximidade tornam-se sempre mais silenciosa, como em um "passeio entre o amado e a amante, em que, num certo momento, após o diálogo e a alegria do reencontro, fica-se simplesmente um perto do outro. Não se diz mais nenhuma palavra, falam apenas com os olhos e com o coração. Assim, sempre mais próximo de Deus, conhece-se em profundidade seu pensamento, pressente se claramente seu coração no texto e abandona-se a ele". Uma outra característica da contemplação é que, dentro do método da leitura orante, ela é ativa, exige conversão, tomada de posição. Quando, através do texto, lido, meditado e rezado, experimentamos o amor de Deus, algo acontece conosco. Mudamos. Não podemos mais ficar na mesma. Esse é o desafio, realizar aqui e agora o Reino de Deus.
7º PASSO. O Método da Leitura Orante da Bíblia é como um mapa: indica o caminho, mostra o que Deus quer de nós. O mesmo Deus que estava presente no texto lido, meditado, orado e contemplado e que respondia ao grito do povo sofredor (Ex 3,7), está e estará sempre presente na nossa vida, falando conosco a partir de nossa realidade e espera uma tomada de posição da nossa parte, pois sua fala é sempre um apelo a um compromisso pessoal e comunitário com a vida, com os outros, com a transformação da história. Nós somos convidados a tomar uma posição, assumir um compromisso concreto e um dia estaremos no céu e escutaremos as palavras de Jesus: "Tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de bebe; era peregrino e me acolhestes; nu e me vestistes; enfermo e me visitastes; estava na prisão e viestes a mim (Mt 25,35).\
8º PASSO. Rezar um salmo. Salmos são orações poéticas, das quais cerca de cem expressam lamentação e/ou denúncia, e cinqüenta, louvor. Eles dizem que Deus é Alguém: que aparece a qualquer momento; está em comunicação direta com os homens; intervém nos momentos críticos da vida; vence as guerras; curas as doenças; chega a mudar as leis da natureza para realizar o seu plano com os homens. Todos eles nasceram de Circunstâncias que nós também vivemos: alegria, gratidão, tristeza, angústia, dúvida, desespero, frustração, abandono, derrota, luta, vitória, solidão, doença, busca de Intimidade, crise, paz, guerra, incompreensão fidelidade, amizade, traição, doença, velhice, perseguição, injustiça, opressão, sensação de contradição. Por exemplo, se a sua oração te levar a agradecer, reze o Salmo 100, 118; se você estiver angustiado reze o Salmo 51; se você estiver ansioso, reze o Salmo 46; se você estiver em viagem, reze o Salmo 121; se estiver cansado, reze o Salmo 91; se estiver contrito, reze o Salmo 4 ou o 42; se estiver deprimido, reze o Salmo 34, 91 ou o 118,5-6; se estiver desencorajado, reze o Salmo 23 ou o 55,22; em dificuldade, reze o Salmo 16 ou o 31; enfermo ou na dor, reze o Salmo 33; enfrentando crise, reze o Salmo 121; Falta de fé, reze o Salmo 42,5; falta de amigos, reze o Salmo 41,9-13; necessitando orientação, Salmo 32,8; necessitando proteção de Deus, Salmo 27,1-6; 13,1-3; 34,7; tentado, reze o Salmo 1; 139,23. Para cada situação da vida há um Salmo correspondente.
9º PASSO. Na oração, há a necessidade de se despedir, de encerrar não com um ADEUS, mas um, ATÉ LOGO desejoso de um novo encontro, pois, assim como a amizade arrefece se não há momentos de encontro e intimidade, do mesmo modo a fé se debilita se não nos recolhemos em oração. A oração poderá ser encerrada com um Pai Nosso ou um canto de sua preferência.
10º PASSO. Não basta ler, meditar, orar e contemplar a Palavra de Deus. É preciso produzir no cotidiano na realidade concreta do dia-a-dia, em casa e na rua frutos como paz, sorriso, decisão, caridade, entrega, seguimento, serenidade, compreensão, bondade, e.., semeada no seu coração.
Leitura Orante de Marcos 4, 35-41
Hoje vamos dar mais um passo importante no conhecimento do método da Leitura Orante, rezando o texto de Marcos 4,35-41 em que Jesus acalma uma tempestade. Sugiro que você faça primeiro o exercício, sozinho ou em grupo, e depois de exaurir todas as tentativas, procure conhecer as informações do texto a seguir. Vamos lá!
1º PASSO: Procure um lugar sossegado, agradável e acomode-se. Com os olhos fechados coloque-se na presença de Deus, dando alguns minutos para que a "poeira" de seus pensamentos e suas ações se assente um pouco. Inspire paz, tranqüilidade, harmonia, segurança... expire, insegurança, angustia, duvida, medo, tensão...
2º PASSO. Através de um canto, um mantra ou uma oração, peça as luzes do Espírito Santo para esse tempo de oração. Sem a força e o auxilio do Espírito Santo de Deus, nosso esforço será inútil.
3º PASSO. Só agora leia o texto de Marcos 4,35-41. Durante a leitura, faça de conta que você também esta no barco e procure viver o que acontece prestando atenção nas atitudes de Jesus e na reação dos discípulos. Após a leitura procure saber: O que significa “vamos para o outro lado!” O que significa a tempestade nessa travessia? Qual era o mar agitado na época em que Marcos escreve o seu evangelho? O que estava acontecendo na comunidade de Marcos trinta e sete anos após a morte e ressurreição de Jesus para ele afirmar o que esta no versículo 38? Uma dica: este texto foi escrito para ser uma resposta aos problemas e conflitos que a comunidade estava enfrentando por volta dos anos 70 durante a perseguição romana.
4º PASSO. Agora é o momento de atualizar o que se leu. É hora de responder a pergunta: O que diz o texto para mim, para nós? O que esse texto tem de semelhante e de diferente com a nossa vida? Qual é, hoje, o mar agitado para você? Alguma vez as tempestades do mar da vida, já ameaçaram afogar você? Quais as tempestades que estamos enfrentando hoje? Para ajudar a responder leia Isaías 43 e compare com o episódio da tempestade acalmada. Qual conclusão que você tira?
5º PASSO. Agora é o momento de nos colocar em comunhão íntima com Deus, através da oração e expressar nossos sentimentos, angústias, apreensões, alegrias e sonhos que por ventura surgiram durante os passos anteriores. Não se preocupe em falar muito e em preparar palavras bonitas, que fórmula usar. Fale com espontaneidade, simplicidade e naturalidade e conte a Deus Pai tudo o que o seu coração sente no momento.
6° PASSO. Agora é o momento de contemplar, ou seja, de se ter uma “conversa tranqüila com Deus", sem outro desejo a não ser o de permanecer ao seu lado. Olhar e sentir-se olhado por Ele, num sentimento de adoração, escuta e silêncio. Fala-se apenas com os olhos e com o coração. Outra característica da contemplação é que, dentro do método da leitura orante, ela é ativa, exige conversão, tomada de posição. Quando, através do texto, lido, meditado e rezado, experimentamos o amor de Deus, algo acontece conosco. Mudamos. Não podemos mais ficar na mesma. Esse é o desafio, realizar aqui e agora o Reino de Deus.
7º PASSO. O Método da Leitura Orante da Bíblia é como um mapa: indica o caminho, mostra o que Deus quer de nós. O mesmo Deus que estava presente no texto lido, meditado, orado e contemplado e que respondia ao grito desesperador dos discípulos, está e estará sempre presente na nossa vida, falando conosco a partir de nossa realidade e esperando uma tomada de posição da nossa parte, pois sua fala é sempre um apelo a um compromisso pessoal e comunitário com a vida, com os outros, com a transformação da história. Nós somos convidados a tomar uma posição, assumir um compromisso concreto.
8º PASSO. Agora reze o Sl 107 (106) e se detenha nos versículos 25 a 30.
9º PASSO. Na oração, há a necessidade de se despedir, de encerrar não com um ADEUS, mas com um, ATÉ LOGO desejoso de um novo encontro, pois, assim como a amizade arrefece se não há momentos de encontro e intimidade, do mesmo modo a fé se debilita se não nos recolhemos em oração. A oração poderá ser encerrada com um Pai Nosso ou um canto de sua preferência.
10º PASSO. Não basta ler, meditar, orar e contemplar a Palavra de Deus. É preciso produzir no cotidiano na realidade concreta do dia-a-dia, em casa e na rua, frutos como paz, sorriso, decisão, caridade, entrega, seguimento, serenidade, compreensão, bondade, e.., semeada no seu coração. Viva, pois na presença de Deus.
Comentando Mc 4,35-41
Texto dentro do contexto.
Muitas vezes costumamos usar frases como "estou passando por uma tempestade" para falar que estamos passando por uma situação difícil.
E quantas vezes também dizemos que nossa comunidade esta navegando em "águas tranquilas" ou de "vento em popa". Com isso queremos dizer que o momento não há dificuldades, que tudo vai bem, as pessoas se entendem e de fora não há maiores ameaças que possam destruir o espírito comunitário. Mas, é assim que sentimos normalmente a comunidade? Ou tem outras figuras que explicam melhor o que se passa? Por exemplo: parece que o "barco esta afundando" ou uma "tempestade" atingiu nossa comunidade, ou ainda, tem muita "onda brava" querendo nos arrasar. Que significa isso? Que mar de nossa sociedade está tão cheio de perigos, ameaças que a gente não consegue mais se defender. Ou que os ventos do espírito de egoísmo e consumismo invadem tudo. E nós, ficamos com medo ou resistimos com confiança e coragem? Como sentimos a presença de Jesus que acalma a tempestade?
Marcos usa essa mesma linguagem para mostrar como as suas comunidades estavam, trinta e sete anos após a morte e ressurreição de Jesus. Explico-me melhor.
Quando surgiu o Evangelho de Marcos, por volta dos anos 70, suas comunidades estavam sendo perseguidas pelo Império Romano. A situação de medo, pavor e intranquilidades fez com que Marcos comparasse suas comunidades com um barquinho perdido no mar da vida, açoitado por ventos fortes impedido-o de chegar ao porto.
Atenção, agora vem o mais importante: Para os Judeus o mar era o lugar da morada dos monstros e dos poderes da morte, onde a frágil vida do homem estava em constante perigo. Para os membros das comunidades, Jesus parece estar dormindo, pois não aparece nenhum poder divino para salvá-las das perseguições. É em vista desta situação de desespero que Marcos na hora de escrever o seu Evangelho, como resposta positiva para as comunidades se animarem, recolhe vários episódios da vida que revelam qual o Jesus presente no meio das comunidades. Com esse episódio Marcos procura abrir os olhos dos membros da sua comunidade para mostrar-lhes que o contrário da fé não é a incredulidade, mas sim o medo. E que o medo impede de compreender Jesus como o Senhor da vida, que triunfa sobre a morte. Jesus é vencedor! Não há motivo para elas terem medo. Este é o motivo do relato da tempestade acalmada.
1. Comentando
1. Marcos 4,35-36: O ponto de partida: "Vamos para o outro lado".
Foi um dia pesado, de muito trabalho. Terminado o discurso das parábolas, Jesus diz: "Vamos para o outro lado!". Do outro lado do mar da Galiléia ficava uma região de gente "pagã", que não pertencia ao povo israelita. Os discípulos sentiam medo de entrar em contato com essa gente. Do jeito que Jesus estava, eles o levam no barco, de onde tinha feito o discurso das parábolas. De tão cansado, Jesus deita e dorme. Este é o quadro inicial que Marcos pinta. Quadro bonito, bem humano.
2. Marcos 4,37-38: A situação desesperadora: "Não te importa que pereçamos?"
O mar era um lugar que dava medo. O povo daquele tempo pensava que no mar moravam grandes monstros e onde o demônio andava solto. Quem mandava no mar eram os demônios. Por isso, na Bíblia, muitas vezes mar não tem só o sentido de grande extensão de água, mas também símbolo de perigo e das forças do mal.
Só que muita gente não sabe que o "Mar da Galiléia" na verdade não passava e não de um grande lago cercado de altas montanhas. Às vezes, por entre as fendas das rochas, o vento cai em cima do lago e provoca tempestades repentinas provocando as inúmeras interpretações, como as que já vimos.
Vento forte, mar agitado, ondas... São também símbolos de agitação, ligados ao mar. Quando as primeiras comunidades cristãs refletiam esta passagem do Evangelho, lembravam-se das suas dificuldades e das ameaças de destruição que enfrentavam.
Os discípulos eram pescadores experientes. Se eles acham que vão afundar, então a situação é perigosa mesmo! A barca era um instrumento para navegar. Mas, era também um símbolo da comunidade dos primeiros cristãos. Eles sentiam a sua caminhada como um barco navegando no mar. Por isso, no texto fala, não só da barca onde esta Jesus, mas também de outras barcas, que representam todas as comunidades que surgiram depois de Jesus.
Jesus nem sequer acorda e continua dormindo. Este sono profundo não é só sinal do grande cansaço, é também expressão da confiança tranqüila que ele tem em Deus. O contraste entre a atitude de Jesus e a dos discípulos é grande!
Os primeiros cristãos, muitas vezes, achavam que as dificuldades e perseguições eram maiores do que as suas forças. Jesus, que tinha prometido estar sempre junto deles, parecia estar dormindo...
3. Marcos 4,39-40: A reação de Jesus: "Vocês ainda não têm fé?"
Jesus acorda, não por causa das ondas, mas por causa do grito desesperado dos discípulos. Primeiro, ele se dirige ao mar e diz: Fique quieto! Cale-se! Acalme-se! E logo o mar se acalma. Não se trata de uma ordem de Jesus que tem efeitos mágicos. Marcos não quer mostrar que Jesus pode mudar as leis da natureza. Quer mostrar que Jesus é uma presença que vence os poderes do mal e traz de novo coragem e confiança para os seguidores que estão assustados com as dificuldades e perseguições.
Em seguida, se dirige, aos discípulos e diz: "Por que vocês têm medo? Ainda não têm fé?" A impressão quer se tem é que não é preciso acalmar o mar, pois não havia nenhum perigo: É como quando você chega numa casa e o cachorro, ao lado do dono late muito. Aí não precisa ter medo, pois o dono está lá e controla a situação. O episódio evoca o êxodo, quando o povo, sem medo, passava pelo meio das águas do mar (Ex 14,22). Evoca o profeta Isaías que dizia ao povo: "Quando passares pelas águas eu estarei contigo!" (Is 43,2). Jesus refaz o êxodo e realiza a profecia anunciada pelo Salmo 107 (106),25-30.
4. Marcos 4,41: O não saber dos discípulos: "Quem é este homem?"
Jesus acalma o mar e diz: "Então, vocês não têm fé?" Os discípulos não sabem o que responder e se perguntam: "Quem é este homem a quem até o mar e o vento obedecem?" Jesus parece um estranho para eles! Apesar da longa convivência, não sabem direito quem ele é. Quem é este homem? Com esta pergunta na cabeça, as comunidades continuavam a leitura E até hoje, é esta mesma pergunta que nos leva a continuar a leitura do Evangelho. É o desejo de conhecer sempre melhor o significado de Jesus para a nossa vida.
3. Alargando
Marcos começa o seu evangelho dizendo: "Início da Boa Nova de Jesus Cristo, Filho de Deus" (Mc,1). No fim, na hora da morte de Jesus, um soldado pagão declara: "Verdadeiramente, este homem era Filho de Deus!" (Mc 15,39). Assim, tanto no começo como no fim do Evangelho, Jesus é chamado Filho de Deus. Entre o começo e o fim, aparecem vários outros nomes de Jesus; mais de 20! Eis a lista dos nomes e títulos que aparecem no Evangelho de Marcos entre as expressões filho de Deus no começo (Mc 1,1) e no fim (Mc 15,39)
* Messias, Cristo (isto é, Ungido) (Mc 1,1; 8,29; 14,61; 15,32).
* Senhor (Mc 1,3; 5,19; 11,3).
* Filho amado (Mc 1,11; 9,7).
* Santo de Deus (Mc 1,24).
* Nazareno (Mc 1,24; 10,47; 14,67; 16,6).
*Filho do Homem (Mc 2,10.28; 8,31.38; 9,9.12.31; 10,33.45; 13,26; 14,21.21.41.62).
* Noivo (Mc 2,19).
* Filho de Deus (Mc 3,11).
* Filho do Deus altíssimo (Mc 5, 7).
* Carpinteiro (Mc 6,3).
* Filho de Maria (Mc 6,3).
* Profeta (Mc 6,4.15; 8,28).
* Mestre (freqüente).
* Bom Mestre (Mc 10,17). .
* Filho de Davi (Mc 10,47.48; 12,35-37).
* Rabboni (Mc 10,51).
* Bendito o que vem em nome do Senhor (Mc 11,9).
* Rabbi (Mc 11,21).
* Filho (Mc 13,32).
* Pastor (Mc 14,27).
* Filho do Deus bendito (Mc 14,61)
* Rei dos judeus (Mc 15,2.9.18.26)
* Rei de Israel (Mc 15,32).
Cada nome, título ou atributo é uma tentativa de expressar o que Jesus significava para as pessoas. Mas um nome, por mais bonito que seja, nunca chega a revelar o mistério de uma pessoa muito menos da pessoa de Jesus. Além disso, alguns destes nomes dados a Jesus, inclusive os mais importantes e os mais tradicionais, são questionados e colocados em dúvida pelo próprio Evangelho de Marcos. Assim, na medida em que avançamos na leitura do evangelho, Marcos nos obriga a rever nossas idéias e a nos perguntar, cada vez de novo: "Afinal, quem é Jesus para mim, para nós?"
1. Alguns esperavam que o Messias fosse o "Santo de Deus" (Mc 1,24), isto é, que fosse um Sumo Sacerdote. O demônio alude a esta esperança (Mc 1,24). Jesus manda que ele cale a boca!
2. Outros esperavam o Messias como Filho de Davi. Mas o próprio Jesus questionou este título: "Como é que o Messias pode ser filho, se o próprio Davi o próprio Davi o chama de meu Senhor?" (Mc 12,3537).
3. Outros esperavam um Messias Rei. Porém quando Pilatos pergunta se ele é rei, Jesus não afirma nem nega, mas responde: "É você quem está dizendo" (Mc 15,2). E quando falava dos reis e governantes, insistia com os discípulos: "Entre vocês não seja assim!" (Mc 10,43).
4. O mesmo vale para o título Messias. Pedro confessa que Jesus é o Messias. Mas quando Jesus tira as conseqüências e começa a falar da cruz, Pedro não quer saber (Mc 8,31-33). Jesus é o Messias, mas não do jeito que Pedra o imaginava
5. Os possessos chamam Jesus de "Filho de Deus" (Mc 3,11) e "Filho do Deus Altíssimo" (Mc 5,7). Mas Jesus deu ordem para que o demônio se calasse e saísse deles (Mc 3;.1.2; 5,8). Diante do tribunal, os inimigos acusavam Jesus e perguntavam: "És tu o Messias, o Filho do Deus bendito?".
E ele respondeu: "Eu sou! E vocês vão ver o Filho do Homem sentado à direita do Poderoso e vindo com as nuvens do céu" (Mc 14,62). Na hora de confirmar, Jesus não diz que é Filho de Deus, mas sim que é Filho do Homem. É a mesma coisa? Uma coisa é certa: Jesus não é Filho de Deus do jeito que o demônio (Mc 3,11; 5,7) e os inimigos (Mc 14,61)0 imaginavam. Então, como Jesus é Filho de Deus? Ficou a pergunta na cabeça do povo, dos discípulos e dos leitores e leitoras!
Afinal, quem é Jesus? Quanto mais se avança na leitura do Evangelho de Marcos, tanto mais se quebram os títulos e critérios. Jesus não cabe em nenhum destes nomes, em nenhum esquema, em nenhum título. Ele é maior! Aos poucos, o leitor, a leitora vai se entregando e desiste de querer enquadrar Jesus em algum conceito conhecido ou idéia já pronta, e o aceita do jeito que ele mesmo se apresenta. O amor capta, a cabeça, não!
LEITURA ORANTE DE MATEUS 9,36-10,1-8
No exercício de hoje, veremos que Deus tem um Plano de Salvação para todos os homens. Mas esse plano ele não o realiza sozinho. Ele conta com a participação de inúmeras pessoas que sempre chama e envia em missão.
1º PASSO. Procure um lugar sossegado, agradável e acomode-se. Com os olhos fechados coloque-se na presença de Deus, dando alguns minutos para que a "poeira" de seus pensamentos e suas ações se assente um pouco. Inspire paz, tranqüilidade, harmonia, segurança... Expire insegurança, angústia, dúvida, medo, tensão...
2º PASSO. Através de um canto, um mantra ou uma oração, peça as luzes do Espírito Santo para esse tempo de oração. Sem a força e o auxilio do Espírito Santo de Deus, nosso esforço será inútil.
3º PASSO. Leia atentamente o texto imaginando-se estar presente entre os apóstolos. Ouça atentamente o que Jesus esta falando. Ele se compadece das multidões cansadas e abatidas, que sofrem todos os tipos de problemas e exclusões. Ter compaixão de alguém significa sentir suas dores e sofrimentos. Para ajudar essas multidões, Jesus chama e envia 12 Apóstolos com algumas recomendações: curar os doentes, ressuscitar mortos, purificar leprosos e expulsar demônios. O que isso significa para a comunidade de Mateus quando o Ele escreveu o Evangelho?
4º PASSO. Agora é o momento de atualizar o que se leu. É hora de responder a pergunta: O que diz o texto para mim, para nós? O que esse texto tem de semelhante e de diferente com a nossa vida? O que diria Jesus ao contemplar a realidade de hoje? Quem ele chamaria? Como atualizar as mesmas recomendações? Para ajudar a responder leia Ex 19,2-6a. Qual conclusão que você tira?
5º PASSO. Agora é o momento de nos colocar em comunhão íntima com Deus, através da oração e expressar nossos sentimentos, angústias, apreensões, alegrias e sonhos que por ventura surgiram durante os passos anteriores. Não se preocupe em falar muito e em preparar palavras bonitas, que fórmula usar. Fale com espontaneidade, simplicidade e naturalidade e conte a Deus Pai tudo o que o seu coração sente no momento.
6° PASSO. Agora é o momento de contemplar, ou seja, de se ter uma “conversa tranqüila com Deus", sem outro desejo a não ser o de permanecer ao seu lado. Olhar e sentir-se olhado por Ele, num sentimento de adoração, escuta e silêncio. Fala-se apenas com os olhos e com o coração. Outra característica da contemplação é que, dentro do método da leitura orante, ela é ativa, exige conversão, tomada de posição. Quando, através do texto, lido, meditado e rezado, experimentamos o amor de Deus, algo acontece conosco. Mudamos. Não podemos mais ficar na mesma. Esse é o desafio, realizar aqui e agora o Reino de Deus.
7º PASSO. O Método da Leitura Orante da Bíblia é como um mapa: indica o caminho, mostra o que Deus quer de nós. O mesmo Deus que estava presente no texto lido, meditado, orado e contemplado e que respondia ao grito desesperador dos discípulos, está e estará sempre presente na nossa vida, falando conosco a partir de nossa realidade e esperando uma tomada de posição da nossa parte, pois sua fala é sempre um apelo a um compromisso pessoal e comunitário com a vida, com os outros, com a transformação da história. Nós somos convidados a tomar uma posição, assumir um compromisso concreto.
8º PASSO. Agora reze o Sl 99.
9º PASSO. Na oração, há a necessidade de se despedir, de encerrar não com um ADEUS, mas com um, ATÉ LOGO desejoso de um novo encontro, pois, assim como a amizade arrefece se não há momentos de encontro e intimidade, do mesmo modo a fé se debilita se não nos recolhemos em oração. A oração poderá ser encerrada com um Pai Nosso ou um canto de sua preferência.
10º PASSO. Não basta ler, meditar, orar e contemplar a Palavra de Deus. É preciso produzir no cotidiano na realidade concreta do dia-a-dia, em casa e na rua, frutos como paz, sorriso, decisão, caridade, entrega, seguimento, serenidade, compreensão, bondade, e... semeada no seu coração. Viva, pois na presença de Deus.
Situando o texto de Mateus 9, 36-10,1-8 dentro do contexto
1- Situando o texto dentro do contexto
Na época em que Mateus escreveu o Evangelho, as comunidades cristãs, quarenta e sete anos após a morte e ressurreição de Jesus, passavam por momentos difíceis: problemas internos, conflitos com as lideranças do judaísmo e a perseguição do Império romano. O ardor missionário andava desmotivado. Em resposta a essa situação, Mateus escreve o discurso sobre a missão. Primeiramente faz uma introdução (cf. 9,36-38) mostrando que Jesus, se compadece das multidões cansadas e abatidas, que estavam sofrendo todos os tipos de problemas e exclusões. Ninguém se preocupava com o povo, o qual se encontrava em situação desesperadora. Parece um rebanho sem pastor, expressão conhecida no Primeiro Testamento (cf. Jr 23; Ez 34).
A compaixão revela o lado maternal de Jesus e resume sua missão. Na Bíblia, a compaixão (rahamin) significa um amor uterino (réhemquer dizer útero) isto é, uma forma de amar maternal: como uma mãe olha e ama uma criancinha que esta no seu útero. Ter compaixão de alguém significa sentir suas dores e sofrimentos.
Na tradição budista, há um sermão de Buda sobre a compaixão, no qual ele aconselha os fiéis a olharem toda pessoa humana como uma mãe olha e considera o seu filho único. O atual Dalai Lama gosta de citar e comentar esse discurso da compaixão que, nessa acepção, não significa nenhum olhar de superioridade sobre um coitadinho que merece piedade, mas quer dizer a solidariedade de quem assume o destino de sofrer juntos para juntos se libertar.
Na segunda parte do discurso (cf 10,1-8) destaca-se a necessidade de muitos “operários”para a obra evangelizadora. Jesus chama os que o acompanham mais de perto e compartilham as suas preocupações (10,1-4). No começo eram quatro (4,18-22). Agora, são doze, isto é, um grupo completo que resume o povo de Israel, como os 12 patriarcas. O número doze é símbolo da totalidade. Todos são convidados a libertar-se e enviados a trabalhar em favor da justiça que liberta das diferentes formas de opressão. Os doze discípulos, como figura representativa das doze tribos do antigo Israel e começo do novo povo de Deus, acenam para a comum co-responsabilidade no anúncio e na realização do Reino de Deus. O termoapóstolo quer dizer enviado. Na época, era comum grupos e instituições judaicas terem missionários.
Ainda a respeito destes enviados do Senhor, Mateus, é tão fiel à cultura judaica que não conta que Jesus também chamou um grupo de mulheres. Lucas conta isso e utiliza o mesmo verbo que Mateus usou para designar os apóstolos (cf. Lc 8, lss.). Mateus não faz distinção entre discípulos e apóstolos. Para Mateus a comunidade de Jesus se restringe praticamente aos doze.
Jesus expõe a situação aos discípulos: "A colheita é grande, mas os trabalhadores são poucos". A urgência da missão evidencia-se pela imagem "a colheita é grande". Urge maior número de colaboradores. É preciso insistir junto ao "Senhor da messe" que envie muitos operários. Jesus não pede ao Pai que envie ceifadores, mas recomenda aos discípulos: "Peçam ao dono da colheita que mande trabalhadores para a colheita". A iniciativa da missão é do Pai. Agindo dessa forma, o Mestre, como bom pedagogo, prepara e co-responsabiliza os discípulos para a missão. Diferentemente dos líderes políticos e sociais, os discípulos devem ser solidários com os sofrimentos do povo.
Historicamente, este texto do Evangelho de Mateus pode aludir ao despovoamento dos campos da Galiléia ou do sul da Síria (ou dos dois lugares) após as guerras. As palavras de Jesus se inspiram numa realidade de desolação e de abandono, para pedir trabalhadores para a colheita do Reino. Na cultura judaica, há uma sentença de um rabino que diz: “O dia é curto, o trabalho abundante, os trabalhadores preguiçosos, mas a recompensa é grande, pois o dono da casa tem urgência”.
A prática da justiça traduzida em gestos concretos a serviço do povo, na liderança ou no exercício de atividades promotoras de vida, requer a colaboração de muitas pessoas. O fato de Jesus comparar a atividade missionária a uma grande colheita reflete que está havendo uma caminhada, já colhendo resultados positivos. Contudo, isso não deve acomodar ninguém. A colheita pode ser ainda maior, se contar com mais colaboradores. A missão evangelizadora nasce da percepção do e da solidariedade para com o povo abandonado, amparada pela esperança de que o empenho de muitos colaboradores em favor da justiça produzirá abundantes frutos de vida para todos.
A primeira coisa é que Ele lhes dá poder sobre os espíritos maus, para expulsá-los e para curar toda enfermidade, ressuscitar os mortos e purificar os leprosos. "Vocês receberam de graça, dêem de graça!"
Hoje, se fala muito em energia positiva e negativa. No judaísmo da época de Jesus, a crença em "espíritos maus" era influência da religião persa e mesopotâmica. Hoje, no meio do povo brasileiro, há influências de culturas religiosas indígenas e afro-brasileiras. Jesus respeitou e assumiu a linguagem e as crenças do seu povo, mesmo as estranhas ao pensamento original da Bíblia.
Jesus aponta aos doze a prioridade da missão: "Não tomem o caminho dos pagãos, e não entrem nas cidades dos samaritanos! Vão antes às ovelhas perdidas da casa de Israe1!". Para o Mestre, a urgência é ir ao encontro e colocar-se a serviço daqueles de quem a dignidade e a liberdade foram roubadas e que se encontram subjugados aos mecanismos da escravidão e da morte.
Jesus também revela o conteúdo do anúncio missionário: "Vão e anunciem: o Reino do Céu está próximo". A presença do Reino revela-se por meio de relações reconciliadas: de fraternidade, de paz e de gratuidade. Seu anúncio igualmente deve acontecer por intermédio de relações que assinalem sua presença e gerem um novo estilo de vida. Enfim, os doze são enviados para fazerem o mesmo que Jesus fez: "Curar os doentes, ressuscitar os mortos, purificar os leprosos e expulsar os demônios". A missão dos discípulos consiste em gerar um novo povo, libertando as pessoas de tudo o que as oprime, conforme o projeto de Deus.
2. Atualizando a Palavra
A Boa-Nova deste domingo realça a importância da missão da Igreja, povo sacerdotal, povo da aliança. Amplo é o panorama da missão evangelizadora. A compaixão de Jesus pelo povo abandonado, como "ovelhas sem pastor", faz pensar na ação evangelizadora das populações das grandes cidades, dos bairros e das periferias, sem contar aquelas distantes, que se multiplicam por toda parte, nos campos, nas florestas, nas margens dos rios e nos assentamentos. Como anunciar a Boa-Nova do Reino nas violentas periferias de certas cidades que acolhem milhares de pessoas todos os dias? Em meio a essa realidade, a Igreja é chamada a repensar profundamente e a relançar com fidelidade e audácia sua missão. Ela não pode fechar-se diante daqueles que só vêem confusão, perigos e ameaças (cf.Documento de Aparecida, 11).
Jesus sente compaixão pelas multidões porque ninguém se preocupa com elas nem os políticos, nem os dirigentes religiosos. Todos se preocupam com seus interesses e com o próprio status. Assim, as grandes massas de pobres desafiam a Igreja e a consciência cristã.
Este texto de Mateus é, antes de tudo, uma palavra de esperança e uma garantia do amor e da compaixão de Deus para cada um de nós, membros de seu povo. Em Jesus, o Bom Pastor, Deus solidariza-se com as pessoas que mais sofrem. Por meio de seu Filho, o Pai continua o projeto da aliança com os pobres da terra. Jesus emoldura a missão evangelizadora com a atitude de compaixão pelo povo abandonado, para avisar que a missão, mais do que uma simples transmissão dos conteúdos da fé, constitui-se em presença solidária do discípulo e missionário no meio do povo. Seu testemunho e sua convivência sensível e tema com os desprotegidos são mais eloqüentes do que muitas palavras.
A tarefa evangelizadora para a Igreja não é tanto de pregar o Evangelho a espaços geográficos cada vez mais vastos ou populações maiores, mas de chegar a atingir e transformar, pela força do Evangelho, os critérios de julgar, os valores que contam, os centros de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e o modelo de vida da humanidade. É preciso evangelizar, não de maneira decorativa, como que aplicando um verniz superficial, mas de maneira vital, em profundidade, até as raízes - a cultura e as culturas humanas - a partir sempre da pessoa e fazendo continuamente apelo para as relações das pessoas entre si e com Deus.
Jesus sabe que, no mundo, sempre haverá ovelhas sem pastor e, por isso, deseja que na terra haja pastores para guiar suas ovelhas - o seu povo. Os pastores são, sobretudo, os sacerdotes. Estes são muito poucos em relação à população. Mas "em relação à missão, o Concílio Vaticano II entende que toda a Igreja é missionária e a obra da evangelização é um dever fundamental do povo de Deus" (cf. CNBB, Missão e Ministérios dos leigos e leigas, doc. 62, n. 47). A partir da missão de Jesus, entende-se a missão da Igreja no mundo, isto é, a nossa missão, a de todos os cristãos. A cada seguidor de Cristo foi confiada uma tarefa no campo do mundo. Seja qual for a situação em que se encontram, todos os cristãos têm esta missão a cumprir: dedicar a própria vida para a libertação dos irmãos, enchendo-os de esperança e de motivação na caminhada em busca de vida digna e plena.
Os cristãos são convidados a "revelar a Boa-Nova" do Mestre, sendo portadores de boas novas de esperança para a sociedade e não profetas de desventuras.
Hoje estamos assistindo ao fenômeno pelo qual a pregação do Evangelho transforma-se em negócio lucrativo. Pelo exemplo de Jesus, evidencia-se que a evangelização não é proselitismo sectário, nem propaganda de mercadoria, nem oferta interesseira de uma tecnologia, mas anúncio da Boa-Nova que suscita uma nova sociedade, marcada por relações de justiça, de fraternidade e de paz.
O seguidor de Cristo não trabalha em prol dos semelhantes em vista de vantagens pessoais, seja para se tomar conhecido e estimado, seja para se enriquecer com seus serviços religiosos, como faziam os rabinos. Como o Mestre, o cristão desenvolve seu trabalho evangelizador de forma gratuita. Sua recompensa é a alegria de ter servido e amado os irmãos com a mesma generosidade que ele aprendeu de Jesus. "Vocês receberam de graça, dêem de graça!". Essa advertência, com a qual Jesus conclui o texto de hoje, é, ao mesmo tempo, uma garantia da fidelidade a Jesus e de autenticidade dos evangelizadores.
A gratuidade e a alegria do discípulo são o antídoto em face do mundo atemorizado pelo futuro e oprimido pela violência e pelo ódio. A alegria do discípulo não é um sentimento de bem estar egoísta, mas uma certeza que brota da confiança (fé) que tranqüiliza o coração e potencializa para o anúncio da Boa-Nova do amor de Deus.
"Oxalá o mundo atual- que procura às vezes com angústia, às vezes com esperança - possa assim receber a Boa-Nova, não através de evangelizadores tristes e desalentados, impacientes ou ansiosos, mas através de ministros do Evangelho, cuja vida irradia o fervor de quem recebeu, antes de tudo em si mesmo, a alegria de Cristo e aceita consagrar sua vida à tarefa de anunciar o Reino de Deus e de implantar a Igreja no mundo" (Documento de Aparecida, 552).
O Jovem rico Mt 19,16-22
Leitura: O que diz o texto? Leia atentamente o texto lembrando-se que ele é uma resposta para resolver conflitos que a comunidade de Mateus estava enfrentando. Quais são esses conflitos? Qual a recomendação que Jesus faz e que Mateus repete para as suas comunidades quarenta e sete anos depois?
É preciso saber que Mateus esta escrevendo para Judeus convertidos e, portanto, apegados ao cumprimento da Lei. Este jovem é um deles. É um observador restrito da Lei. Só que essa observância não basta, ele quer mais do que isso.
É interessante notar que geralmente, os pobres pedem a cura do corpo e soluções para seus problemas imediatos. Os ricos pedem para "possuir" a vida eterna.
A forma muito pedagógica de Jesus o manda observar o que esta escrito na Lei (Ex 20,12-16; Dt 5,16,20 e Lv 19,18). Esses Mandamentos são aos que versam sobre o justo relacionamento com o próximo, pois, para Jesus, os mandamentos relativos ao amor a Deus estão contemplados no amor ao próximo. O jovem mostrando que conhecia muito bem as escrituras responde que a observava desde pequeno e pede: - o que mais me falta fazer?
Jesus vendo que o jovem quer mais do que isso, o chama para ser discípulo através da renuncia voluntária aos bens, a partilha com os pobres e o seguimento até a cruz. Mas o jovem não se sente com condições de viver isto é, entristecido, se retira.
E assim podemos concluir que o caminho para a vida eterna é o seguimento de Jesus, com seu amor misericordioso, libertador e sem restrições. O apego à riqueza, por sua vez, afasta a pessoa desse seguimento. Além disso, aquele que serve à riqueza está consolidando o sistema injusto que oprime e explora os pobres para o aumento dos bens dos ricos.
2. Meditação: O que o texto diz para mim, hoje? Esta narrativa é encontrada também em Marcos (Mc 10,17-22) e Lucas (18,18-23), com pequenas diferenças entre si. Valeria a pena ler as duas narrativas e observar quais são essas diferenças. Um dos episódios mais angustiantes é esta história do jovem rico, que perdeu a amais estupenda oportunidade do mundo, retirando-se pesaroso, porque era possuidor de muitos bens. Esta história é a de toda humanidade em geral.
Muitos recusam a salvação que Jesus nos oferece, não pelo fato de possuir muito dinheiro ou muitas propriedades, pois os ricos formam uma minoria, mas porque todos, todos nós, possuímos grandes bens, embora de outra natureza como idéias preconcebidas, confiança em nossos próprios julgamentos, apego a tantas coisas, o nosso orgulho, a nossa fidelidade sentimental ou interesseira a certas instituições ou organizações, preocupações de amor-próprio, hábitos de vida que não temos o menor desejo de sacrificar. É incrível como nos prendemos a direitos adquiridos, a vaidades e honorários deste mundo. Todas essas posses nos acorrentam e nos mantém exilados de Deus.
Porque a mensagem de Cristo foi tão mal acolhida entre os sacerdotes de Jerusalém? A resposta é simples; eles também possuíam "grandes bens": sua ciência de rabinos, suas honrarias públicas, sua autoridade, suas funções oficiais importantes, enfim.
O jovem rico é de fato, um dos personagens mais trágicos que já existiram. Não devido às suas riquezas (porque a riqueza, em si, não é boa nem má), mas pelo fato de estar sujeito ao amor do ouro, por colocar o coração nisso, e como diz o apóstolo Paulo, é a fonte de todos os males. Ele poderia ter possuído os seus milhões, mas se o seu coração a eles não estivesse acorrentado, como lhe teria sido fácil entrar no Reino dos Céus.
Qualquer que seja minha vocação: Jovem leigo, religioso, religiosa, sacerdote, devo estar dentro do Projeto de Deus. Digo, no dia-a-dia, "sim" aos Mandamentos de Deus? Isso me basta ou quero mais? O que esta me impedindo de seguir Jesus Cristo hoje? O que preciso "vender, me desfazer ou partilhar" para ser discípulo ou discípula de Jesus? É preciso estar livre - "venda tudo o que tem, e dê o dinheiro aos pobres e, depois, vem e me siga-me". Livres de tudo, para ter tudo, estar com Aquele que é o Tudo. A Deus não se entrega pela metade. É o que diz padre Zezinho, scj, na canção Águia Pequena (http://www.youtube.com/watch?v=CidF1dkKKsA&feature=related).
3. Oração: O que o texto me leva a dizer a Deus? Rezo, espontaneamente, com salmos ou outras orações e concluo: "Espírito vivificador, a ti consagro o meu coração: aumenta em mim o amor a Jesus. Dai-me coragem de desfazer-me de tudo que me impede de segui-lo plenamente e faze-me sentir filho amado do Pai. Amém". E você? Agora é a sua vez. O que gostaria de dizer a Deus em oração?
4. Contemplação: Qual meu novo olhar a partir da Palavra? Sou chamado a encarnar o Evangelho no coração do mundo. Meu novo olhar é iluminador, ou seja, com minha vida e exemplo vou iluminar com a luz de Cristo as sombras do mundo atual, baseado no ter e indicar às pessoas com quem convivo os caminhos de uma vida nova baseado no ser. Afinal, esta a missão de todo cristão. E o seu? O que este texto esta lhe sugerindo assumir de concreto?
O Reino é um tesouro, uma pérola: Mt 13,44-46
1. Leitura: O que diz o texto? Leia atentamente o texto lembrando-se que ele é uma resposta para resolver conflitos que a comunidade de Mateus estava enfrentando. Quais são esses conflitos? Quais as recomendações que Jesus faz e que Mateus também faz questão de repeti-las para as suas comunidades quarenta e sete anos depois? Jesus diz que o Reino vale muito e vale sacrificar tudo para adquiri-lo. Também diz que o Reino é como um comerciante que encontra uma pérola fina. Da mesma forma, vende tudo o que tem e compra esta pérola. Nos dois casos, cabe ao homem, ou a mulher, descobrir o tesouro, a jóia e decidir por ela, a ponto de renunciar a tudo mais que tem. É uma renúncia ao transitório e que não merece ser supervalorizado. Uma renúncia por preferir o melhor. O homem, então, dá tudo pelo tudo. O que tudo isso significa para a comunidade de Mateus?
2. Meditação: O que o texto diz para mim, hoje? O maior tesouro, a pérola preciosa é participar do Reino, ou seja, da família de Jesus, como os discípulos. O texto me faz recordar o que disseram os bispos em Aparecida: "Jesus faz dos discípulos seus familiares, porque compartilha com eles a mesma vida que procede do Pai e lhes pede, como discípulos, uma união íntima com Ele, obediência à Palavra do Pai, para produzir frutos de amor em abundância. Dessa forma o testemunho de São João no prólogo de seu Evangelho: "A todos aqueles que crêem em seu nome, deu-lhes a capacidade para serem filhos de Deus", e são filhos de Deus que "não nascem por via de geração humana, nem porque o homem o deseje, mas sim nascem de Deus" (Jo 1,12-13)." (DAp 133). E para você o que o texto diz?
3. Oração: O que o texto me leva a dizer a Deus? Eu rezo, espontaneamente, com salmos ou outras orações e concluo, com os bispos da América Latina: Louvamos a Deus pelo dom maravilhoso da vida e por aqueles que a honram e a dignificam ao colocá-la a serviço dos demais; pelo espírito alegre de nossos povos que amam a música, a dança, a poesia, a arte, o esporte e cultivam uma firme esperança em meio a problemas e lutas. “Louvamos a Deus porque, sendo nós pecadores, Ele nos mostrou seu amor reconciliando-nos consigo pela morte de seu Filho na cruz. Louvamos a Deus porque Ele continua derramando seu amor em nós pelo Espírito Santo e nos alimentando com a Eucaristia, pão da vida (Jo 6,35)." (DAp 106). E você, o que gostaria de dizer a Deus em oração?
4. Contemplação: Qual meu novo olhar a partir da Palavra? Meu novo olhar é impregnado do espírito de renúncia para conquistar o tesouro do Reino. E o seu? O que este texto esta lhe sugerindo assumir de concreto?
Texto dentro do seu contexto: Pelo que sabemos, Jesus morreu por volta do ano 33 e Lucas escreveu seu evangelho por volta do ano 80, portanto 47 anos depois da morte e ressurreição de Jesus. Isto significa que Lucas escreveu o evangelho depois da destruição de Jerusalém pelos romanos. Nessa época, estava havendo muita perseguição e, por isso muitas comunidades cristãs estavam desanimadas, com medo, em crise e se desagregando. Suas esperanças ainda diziam que Jesus voltaria. Aonde pode voltar o Messias. Se não a Jerusalém? Mas Jerusalém não existia mais? Que acontecerá agora? Se no tempo da crucificação os olhos dos discípulos não se abriram, agora os olhos das comunidades estão fechados. Foi justamente para essas comunidades que Lucas, quarenta e sete após a morte de Jesus, lembrou que no ano 33 também houve gente desanimada e com vontade de largar tudo. Naquela ocasião aqueles dois discípulos um homem e uma mulher (representado pelas comunidades desanimadas e desagregadas) experimentaram que: caminhando juntos, lendo os sinais da realidade, repartindo o pão e relendo as Escrituras, foi possível recuperar o ânimo e reconstituir a comunidade.
Na leitura popular da Bíblia, em nossa América Latina, é muito valorizado o momento comunitário da partilha da Palavra. De fato, é uma graça poder contar com um grupo, ou uma pessoa com quem partilhar o fruto de todo o esforço de leitura e meditação pessoal. Um lugar privilegiado desta partilha é a própria celebração, seja ela a missa, a celebração dominical da Palavra, o Oficio Divino, a celebração dos sacramentos, etc. Mas tem sido de grande proveito esta partilha nos círculos bíblicos ou nos grupos que se reúnem semanalmente para a leitura orante dos textos bíblicos propostos para o domingo.
Não se trata de discutir, de explicar, de ensinar algo, mas simplesmente de partilhar os frutos da leitura. Em outras palavras, trata-se de testemunhar a palavra revelada e acolhida como dom de Deus na própria vida. O importante é garantir que antes do momento comunitário, haja o tempo da leitura pessoal. O momento de partilha é uma oportunidade de exercitar a escuta da Palavra que vem por meio de um irmão ou irmã.
Por fim, lembramos as palavras de Jesus: O que ouve a palavra e a põe em prática, é como alguém que construiu a sua casa sobre a rocha. Caiu a chuva, cresceram os rios, sopraram os ventos e a casa não caiu, pois estava alicerçada sobre a rocha (cf. Mt 7,24). Em outro texto de Paulo a Timóteo: Presta atenção ao que aprendeste e aceitaste com fé: sabes de quem o aprendeste, e que desde criança conheces a Sagrada Escritura, que pode te dar sabedoria, para que te salves pela fé em Cristo Jesus. Toda Escritura é inspirada e útil para ensinar, repreender, encaminhar e instruir na justiça. Com isso o homem de Deus estará capacitado para todo tipo de boas obras. (2Tm 3,15-17). Santo Ambrósio lembra que a meditação da Palavra nos impele a agir.
LEITURA ORANTE DO SALMO 23: O SENHOR É O MEU PASTOR
1º PASSO: Preparo-me para a Leitura Orante, rezando: Meu Senhor e meu Pai! Envia teu Santo Espírito para que eu compreenda e acolha Tua Santa Palavra! Que eu te conheça e te faça conhecer, te ame e te faça amar, te sirva e te faça servir, te louve e faça louvar por todas as criaturas. Faze, ó Pai, que pela leitura da Palavra, os pecadores se convertam, os justos perseverem na graça e todos consigamos a vida eterna. Amém!
2º PASSO: Agora abra a sua Bíblia e comece a ler o texto indicado. Lembre-se que este Salmo é de confiança individual. O autor do texto ao escrevê-lo, não estava pensando em mim, em você ou nos problemas do nosso século. Ao escrever o texto, ele estava dando uma resposta a um problema concreto que a comunidade dele estava enfrentando. À primeira vista esse salmo não apresenta nenhum conflito, mas só aparentemente. De fato, nele se fala de "vale tenebroso" (4a) "opressores" (5a). O que estaria acontecendo? Qual a imagem de Deus que aparece no texto? O que estava acontecendo na comunidade do autor que o levou a escrever esse texto?
Por que Surgiu. A resposta deve iniciar pelo final. O salmista afirma que sua casa é a morada de Javé é, por dias sem fim (6b). A morada de Javé é o Templo de Jerusalém. Essa pessoa está, portanto, aí. O que teriam contra ela os opressores? Certamente queriam matá-la. O salmo, portanto, revela um drama mortal. Uma pessoa, injustamente condenada, foge e se esconde no Templo, que funcionava como lugar de refúgio para quem tivesse cometido um crime sem querer.
Sabemos que em Israel havia a lei do talião. Ferida por ferida, morte por morte. Quem ferisse ou matasse alguém sem querer devia fugir o mais rápido possível. Na época das tribos havia as cidades de refúgio. No tempo da monarquia também o Templo de Jerusalém servia de abrigo nesses casos. O Salmo 23, portanto, nasceu dessa situação. E o refugiado toma a decisão de morar para sempre no Templo (6b).
O salmo tem duas imagens importantes. A primeira Javé como pastor, e o salmista se compara a uma ovelha (1b-4). As palavras destes versículos pertencem ao contexto do pastoreio. Para entender essa imagem, é preciso recordar brevemente a vida dos pastores na terra de Jesus. Normalmente eles tinham um punhado de ovelhas e cuidavam delas com carinho, pois eram tudo o que possuíam. À noite, costumavam deixá-las num curral, junto com outros pastores, sob a proteção de alguns guardas. De manhã, cada pastor chamava as suas pelo nome, elas reconheciam a voz do seu pastor e saíam para uma nova jornada. Ele caminhava à frente, conduzindo-as a pastagens e fontes de água (João 10,1-4).
Na terra de Jesus há desertos, e os pastores deviam atravessá-los para encontrar pastagens. Às vezes logo achavam pastos; outras tinham de caminhar bastante para encontrar água e verdes pastagens. Nessas ocasiões, acontecia que pastor e ovelhas eram surpreendidos pela escuridão da noite. Sabe-se que elas, de noite, ficam totalmente desorientadas e perdidas. O pastor, então, caminhava à frente, voltando para o curral. A escuridão da noite (o "vale tenebroso" do versículo 4) não assustava as ovelhas, pois caminhavam protegidas pelo bastão e cajado do pastor.
A segunda imagem (5-6a) também é muito interessante. Já não trata de ovelhas. O ambiente é o deserto da Judéia. Devemos imaginar uma pessoa fugindo dos inimigos através do deserto. Os opressores estão para alcançá-la quando, de repente, ela se encontra diante da tenda de um chefe dos habitantes do deserto. Essa pessoa é acolhida com alegria e festa, tornando-se hóspede desse chefe. Na terra de Jesus a hospitalidade é coisa sagrada. Quem se refugia na casa ou na tenda de outra pessoa está protegido dos perigos. Quando os opressores chegam à entrada da tenda, vêem a mesa preparada (os habitantes do deserto simplesmente estendiam uma toalha a no chão), o hóspede já tomou banho de óleo perfumado, e percebem que o chefe e seu hóspede estão erguendo brindes a uma velha amizade (a taça que transborda). Nada podendo fazer, os inimigo se retiram envergonhados. O hóspede, algum tempo depois, terá de continuar viagem. O chefe, então, lhe oferece dois guarda-costas, simbolicamente chamados de felicidade e amor, que o acompanharão todos os dias de sua vida.
Entendemos, assim, as duas imagens. O inocente que foge dos que pretendem matá-lo sente-se protegido por Javé como a ovelha que, à noite, caminha sob a proteção do bastão e do cajado do pastor. Com esse tipo de pastor, nada falta a quem confia nele. O inocente sentia-se caçado pelos opressores, mas conseguiu refugiar-se na tenda de Javé, ou seja, no Templo de Jerusalém. E aí ninguém poderá fazer-lhe coisa alguma.
Uma das imagens mais bonitas de Deus no Antigo Testamento - e neste salmo -é a que o mostra como pastor. Esse tema recorda imediatamente o êxodo. De fato, a grande ação de Deus pastor foi ter tirado seu rebanho (os hebreus) do curral do Egito e tê-lo conduzido pelo deserto, introduzindo-o na terra prometida, onde correm leite e mel. Vários textos bíblicos falam disso (por exemplo, Salmo 78,52). Pastor, libertador e aliado, portanto, são temas gêmeos. O salmista tem absoluta confiança no nome de Javé (3) porque sabe que, no passado do povo de Deus, Javé libertou, conduziu e introduziu seu povo na terra da liberdade e da vida. Nessa terra ele acolheu seu povo, preparando-lhe mesa farta, fazendo-o seu hóspede predileto e protegendo-o todos os dias da vida.
Jesus, no evangelho de João, assume as características de Javé pastor, libertador e aliado (João 10), conduzindo as ovelhas para fora dos currais que impedem ao povo o acesso à vida (João 9). Com sua morte e ressurreição, Jesus pastor abriu o caminho de volta ao Pai: "Ninguém vai ao Pai senão por mim" (João 14,6b).
3º PASSO. Esse passo, a meditação, quer atualizar o que se leu,buscando o seu sentido para a nossa vida de hoje, aqui no Brasil, no lugar onde moramos, e, portanto, vai responder a pergunta: O que diz o texto para mim, para nós? O que esse texto tem de semelhante e de diferente com a nossa vida, com a nossa comunidade?
4º PASSO. Provavelmente seja este o salmo mais cantado e rezado. Mas o melhor tempo de rezá-lo é quando necessitamos reforçar nossa confiança em Deus, e isso em meio aos conflitos cotidianos. É bom rezá-lo também em solidariedade com os "marcados para morrer", os inocentes condenados e as vítimas da violência e opressão. Se você se encontra abatida, perseguida, desanimada sem rumo,entre agora em sintonia e diálogo com Deus dando uma resposta solicitada pela Palavra lida e meditada. Agora é o momento de nos colocar em comunhão íntima com Ele e expressar nossos sentimentos, angústias, apreensões, alegrias e sonhos que por ventura surgiram durante a leitura e a meditação. Você não deve se preocupar em falar muito e em preparar palavras bonitas, que fórmula usar. Fale com espontaneidade, simplicidade e naturalidade e conte a Deus Pai tudo o que o seu coração sentiu e experimentou a partir das descobertas feitas até agora.
Outros salmos de confiança individual: 3; 4; 11; 16; 27; 62; 121; 131.
LEITURA ORANTE DE 1Cor 11,17-34 - A EUCARISTIA
1º PASSO: Preparo-me: rezando: Meu Senhor e meu Pai! Envia teu Santo Espírito para que eu compreenda e acolha Tua Santa Palavra! Que eu te conheça e te faça conhecer, te ame e te faça amar, te sirva e te faça servir, te louve e faça louvar por todas as criaturas. Faze, ó Pai, que pela leitura da Palavra, os pecadores se convertam, os justos perseverem na graça e todos consigamos a vida eterna. Amém!2º PASSO: leia o texto de 1Cor 11,17-34. Este texto foi escrito para ser uma resposta aos problemas e conflitos que a comunidade dos Coríntios estava enfrentando. Que problemas eram estes?
Texto no contesto: A eucaristia, inicialmente, era celebrada ao entardecer nas casas particulares das pessoas mais ricas da comunidade, as únicas que tinham capacidade de acolher cinqüenta ou mais pessoas. Não havia igrejas ainda. Antes de começar a Ceia do Senhor propriamente dita, fazia-se uma refeição fraterna. Nesta refeição as pessoas partilhavam e comiam juntos. No entanto, algumas pessoas não queriam partilhar suas comidas com os mais pobres ou com aqueles que não podiam levar nada. Comer com os pobres era visto corno gesto humilhante. Afinal, o que queriam estas pessoas? Comer bem a sua própria comida e receber o corpo e o sangue de Jesus, sem se importar com as pessoas que não tinham comida.
Para estas pessoas bastava comer bem e comungar. Tratava-sede estar de bem com Deus e de bem com seu estômago o gesto religioso era um gesto desligado da vida. Pode-se dizer: "Importa o eu e meu Deus, o resto não vem ao caso". Por isso mesmo, comiam antes de os pobres chegarem. Se empanturravam, se embriagavam enquanto muitos irmãos passavam fome. Paulo reage de maneira forte. É impossível receber o corpo e o sangue de Jesus quando se exclui aqueles que nada têm.
Comungar o corpo e o sangue de Jesus sem se importar com a fome dos irmãos e irmãs é um ato iníquo. É comer e beber a própria: condenação. Não apenas ofende ao criador, mas se trata de uma traição a Jesus que fez de sua vida uma doação e partilha. Como pode alguém receber a doação e partilha da vida de Jesus (pão e vinho) se não seguir o exemplo de doação e partilha com sua própria vida? Paulo nos mostra que é impossível separar o ato religioso do ato social. Quem se esquece das pessoas necessitadas, não pode comungar, pois estaria comendo e bebendo sua própria condenação. Como vemos, antes de pensar num ato religioso a nossa prática eucarística deve nos aproximar das pessoas. A eucaristia tem conseqüências comunitárias.
Paulo nos repassa o que ele mesmo recebeu. "Na noite em que Jesus foi entregue, tomou o pão...". Paulo age dentro da tradição da comunidade igreja. Aquilo que ele mesmo recebeu, ele transmite. O relato da instituição da eucaristia aqui encontrada é provavelmente um dos mais antigos. Ele se assemelha ao relato da instituição de Lc 22, 19-20, também chamada de Tradição de Antioquia (helenista); enquanto que Mt 26, 26-29 traz um relato próximo a Mc 14,22;25, conhecido como Tradição de Jerusalém (hebraica). As duas tradições, a de Marcos/Mateus e a de Paulo/Lucas são fórmulas usadas nas liturgias, dos anos 50 a 70. Era assim que os cristãos de então transmitiam os ensinamentos de Jesus e dos apóstolos.
A compreensão da ceia de Jesus conforme Mc e Mt (Trad. de Jerusalém) é inspirada a partir do texto de Ex 24, 4-8, onde a morte de Jesus é vista como sacrifício cultual. Separa corpo e sangue. A tradição de Antioquia (de Paulo e Lucas) se baseia mais na tradição do profeta Mártir conforme Is 53,12 e da Nova Aliança de Jr 31, 31-34. Trata-se de um gesto de expiação pelos pecados (por vós). Jesus é visto como a vítima da nova aliança. Com a doação da vida de Jesus, perenizado na eucaristia, estabelece-se a nova e eterna aliança.
Para nós, hoje, mais importante do que ficar discutindo como pode se dar o mistério da eucaristia, convém entender o que Paulo quer nos passar com este relato. A princípio podemos destacar dois grandes motivos: o corpo e o sangue de Jesus que se atualizam na liturgia e o compromisso comunitário e eclesial com as pessoas menos favorecidas da comunidade.
3º PASSO: Chamadas pessoalmente, a seguir Cristo em uma congregação dominicana consagrada de modo especial à Eucaristia agora é o momento de atualizar o que se leu. É hora de responder a pergunta: O que diz o texto para mim/para nós? O que esse texto tem de semelhante e de diferente com a minha/nossa vida? O que é Eucaristia para mim? De que maneira eu valoriza e participo dela? Diante de Jesus que se tornou alimento para todos, até que ponto sei partilhar o que sou e tenho com os meus irmãos e irmãs?
4º PASSO. Agora é o momento de nos colocar em comunhão íntima com Deus, através da oração e expressar nossos sentimentos, angústias, apreensões, alegrias e sonhos que por ventura surgiram durante os passos anteriores. Não se preocupe em falar muito e em preparar palavras bonitas, que fórmula usar. Fale com espontaneidade, simplicidade e naturalidade e conte a Deus Pai tudo o que o seu coração sente no momento.
5° PASSO. Este é o momento de contemplar, ou seja, de se ter uma "conversa tranqüila com Deus", sem outro desejo a não ser o de permanecer ao seu lado. Olhar e sentir-se olhado por Ele, num sentimento de adoração, escuta e silêncio. Fala-se apenas com os olhos e com o coração.
6º PASSO. O Método da Leitura Orante da Bíblia é como um mapa: indica o caminho, mostra o que Deus quer de nós. O mesmo Deus presente no texto esta esperando uma tomada de posição da minha parte. Qual compromisso vou assumir a partir de agora?
7º PASSO. Agora reze Is 58,1-12.
8º PASSO. Na oração, há a necessidade de se despedir, de encerrar não com um ADEUS, mas com um, ATÉ LOGO desejoso de um novo encontro, pois, assim como a amizade arrefece se não há momentos de encontro e intimidade, do mesmo modo a fé se debilita se não nos recolhemos em oração. A oração poderá ser encerrada com um Pai Nosso ou um canto de sua preferência.
9º PASSO. Não basta ler, meditar, orar e contemplar a Palavra de Deus. É preciso produzir no cotidiano na realidade concreta do dia-a-dia, em casa e na rua, frutos como paz, sorriso, decisão, caridade, entrega, seguimento, serenidade, compreensão, bondade, e.., semeada no seu coração, pois assumimos, ao entrarmos na congregação, como regra de vida, o mandamento "Amai-vos uns aos outros como Eu vos tenho amado".
Material obtido em: Lectio Divina - Blog do Padre Ray
A leitura orante da Bíblia é mesmo fascinante, é a atitude contemplativa de quem vive e saboreia com intensidade cada momento. Faz nos vivenciar também a mesma experiência de Jó: "Eu te conhecia só de ouvir. Agora, porém, os meus olhos te vêem." (42,5).
ResponderExcluirNão só fascinante, mas muito instrutiva e importante degrau para crescimento na espiritualidade.
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