quinta-feira, 14 de julho de 2011

A inculturação da liturgia romana na história da Igreja

Artigo interessante que pode nos ajudar a entender a questão da inculturação ao longo da história da Igreja.



A inculturação da liturgia romana na história da Igreja

Pedro Boléo Tomé

1. A Antiguidade apostólica e o nascimento da liturgia romana

A liturgia cristã nasce e desenvolve-se em estreita ligação e dependência da tradição judaica. Não são abolidos os antigos ritos, ao menos em totalidade, mas outorga-se-lhes um novo significado. O próprio estilo e modo de rezar sofrem uma forma de inculturação[1].

A liturgia cristã não nasce, portanto, como algo totalmente novo, mas, sob a orientação do Espírito Santo, desenvolve-se sobre matrizes preexistentes mediante um discernimento: de acolhimento de tudo aquilo que está em harmonia com a tradição apostólica e fiel à história da salvação; de exclusão (ou de purificação) de aquilo que é contrário ao Evangelho e à prática cristã; de reinterpretação, dando aos sinais, ritos e modelos, novos conteúdos e novos significados[2].

Pouco a pouco, fez-se sentir uma certa influência helênica. Com a paz de Constantino (édito de Milão, 313), dá-se um mais aberto contacto com a cultura helênica, atenua-se a oposição aos ritos pagãos e alguns elementos desta tradição são assumidos na liturgia.

Mas olhemos para Roma, pois o presente artigo pretende tratar da inculturação da liturgia romana. A Igreja localizada no território romano começa a ser Igreja Romana. Assumem-se na liturgia e, particularmente, no cerimonial pontifical, certos elementos provenientes da corte imperial. A linguagem e os sinais são, no entanto, espiritualizados à luz da Sagrada Escritura e referidos ao mistério de Cristo[3].

Posteriormente, a sociedade sofrerá profundas transformações, no entanto estas insígnias e elementos permanecerão tal como foram assumidos. São institucionalizados e estilizados. Tornam-se, assim, sinais de uma cultura que já não é civil, profana, mas puramente simbólica, «sacra»[4].

Foi tradicional durante muito tempo considerar a existência de uma única liturgia para toda a Igreja, que depois viria a dar lugar às restantes tradições litúrgicas. Atualmente, alguns autores começam a pôr em dúvida essa uniformidade litúrgica dos primórdios da Igreja. No entanto, derivada de uma única liturgia ou não, com o tempo, nas sedes das grandes metrópoles antigas (Jerusalém, Antioquia, Alexandria, Constantinopla, Roma, Milão, Ravena, Aquileia, etc.) nascem tradições litúrgicas, ou também chamadas famílias litúrgicas. A estas sedes estava ligada a memória e a voz autorizada de santos bispos, e deve-se tanto à necessidade de uma adequação a diversas culturas, como à busca de diferentes formas e fórmulas que permitissem conservar inalterada, mais facilmente, a vitalidade da tradição litúrgica[5]. Este fenômeno pode ser descrito como sendo simultaneamente de desenvolvimento, adaptação e inculturação.

Tanto a Oriente como no Ocidente, depois de um período de gestação caracterizado por uma incipiente criatividade de textos e da estruturação do tempo litúrgico, passa-se, na tentativa de se adaptar aos novos contextos culturais, a um período de verdadeira e própria criatividade litúrgica, tanto no que diz respeito aos textos, como às estruturas para os ciclos litúrgicos ou para a celebração dos sacramentos, de modo a alcançar a codificação ou cristalização dos tipos de famílias litúrgicas.

Encontramo-nos, portanto, hoje em dia numa situação diferente daquela da antiguidade apostólica. A inculturação que tratamos neste artigo, e que é impulsionada pela Igreja, a partir do Vaticano II, é a inculturação da liturgia romana, e é neste sentido que deve ser entendida. Não tem por objetivo a criação de novas famílias rituais. Por isso, para responder às necessidades de uma cultura determinada, o Concílio Vaticano II abre a possibilidade de adaptar o Rito romano[6], partindo das edições típicas estabelecidas[7]. Nesta época inicial começa a desenvolver-se a liturgia romana ou o Rito romano. Foi opinião generalizada durante o século XX por parte dos estudiosos a existência de uma liturgia romana «pura», que teria existido entre os séculos V e VII. Alguns falam especificamente dessa liturgia «pura» e procuram analisá-la[8]. Outros, ao tratar a história da liturgia parecem, de alguma forma, partir dessa pressuposição[9]. Por fim, surgem ainda autores que preferem falar, mais do que de um momento estático e bem delimitado no qual se formou a «essência» do Rito romano, de um desenvolvimento orgânico de enriquecimento e crescimento progressivo. Neste sentido, a liturgia romana pura nunca teria existido e, se alguma vez existiu, nunca foi igual a si mesma. Isto é, preferem falar de uma liturgia romana em evolução, de uma liturgia que se encontra continua e simultaneamente desenvolvida e em fase de desenvolvimento[10].

Este rito, que talvez nunca tenha existido numa forma «pura», era a liturgia vigente na metrópole de Roma e nas dioceses sufragâneas. Havia substituído uma liturgia em língua grega e comum à cristandade dos primeiros dois ou três séculos. Os Papas Damaso (366-384), Inocêncio I (401-461), Gelásio I (492-496), Vigílio (537-555) e Gregório Magno (590-604), são os grandes responsáveis da sua implantação e formação. Com Gregório Magno promove-se a codificação da liturgia e alcança-se uma estrutura fixa em que a criatividade litúrgica é mínima.

2. Período franco-alemão: de Gregório Magno (590) a Gregório VII (1073)

Os livros da liturgia romana passam com relativa rapidez ao território franco-germano e aqui entram em contacto com a liturgia galicana (que existia e florescia já há vários séculos). Inicia-se assim uma múltipla e recíproca penetração.

Já com Pipino difunde-se o sacramentário gelasiano e verifica-se um início de reforma litúrgica. Posteriormente, no séc. IX, o imperador Carlos Magno, com a intenção de unificar o império, recorre à unidade da fé e da liturgia. Para tal, manda trazer os livros da liturgia romana e adapta-os à cultura galicana e, concretamente, à liturgia vigente nesse ambiente. Este período em questão constitui a época da liturgia romana sujeita ao influxo franco-germano. Confrontando tanto com os Ordines Romani originais como com o Pontifical Romano posterior, é fácil reconhecer o tipo de liturgia preferida por estes povos: desenvolvimento riquíssimo, material variado e abundante, estilo novo (mais longo, verboso, e dramático por vezes). O resultado é, portanto, uma combinação harmônica da herança romana antiga (caracterizada pelo equilíbrio, simplicidade, sobriedade, expressão estática) com o vigor dos novos povos (mais dinâmico, expansivo, vital, com tendência por vezes a uma espécie de anarquia)[11].

Por volta do século X sucede um processo similar com os imperadores da Germânia. Neste período Roma está em forte decadência litúrgica e a cúria está sem controlo. Os próprios imperadores, nas suas visitas a Roma, impõem o uso destes livros litúrgicos, outrora romanos, mas agora romano-germanos[12]. O caráter simples, sóbrio e prático da liturgia romana cede lugar a uma nova cultura com outro tipo de mentalidade.

Vemos então como, sobre a base da liturgia romana, se adicionaram tradições tanto galicanas como germânicas que, posteriormente, foram introduzidas em Roma como próprias.

Parece conveniente salientar que, durante esta continua evolução, se realizaram inculturações erradas, que foram corrigidas ou eliminadas, em conjunto com as legítimas e verdadeiras, que perduraram[13].

Como a história demonstra, são casos pontuais de inculturações abusivas movidas por finalidades pastorais desviadas que a Igreja corrigiu e rejeitou.

3. De Gregório VII (1073) ao Concílio de Trento (1545)

No século X a vida litúrgica em Roma encontrava-se bastante degenerada e sofre uma influência muito positiva da obra litúrgica dos mosteiros franceses e germanos que, entretanto, tinham chegado a Roma graças aos imperadores. Efetivamente, Cluny, com a sua reforma, constituiu um fundamento seguro para a reforma da Igreja e da liturgia. A liturgia volta a florescer sob o influxo dos Papas da reforma: Gregório VII e Inocêncio III.

Gregório VII protesta contra a destruição da velha liturgia romana e procura restaurá-la. No entanto, ao não conhecer a real situação histórica, instaura e consolida a liturgia romano-franco-germana.

Os Papas ao retomarem o controle da liturgia romana, põem fim às ingerências imperiais, e é imposto a todos os bispos da Igreja o uso dos livros litúrgicos de Roma. A partir de então, o nascente centralismo romano apenas permite a coexistência das liturgias de Milão e de Espanha. Para tal, a ordem mendicante de S. Francisco de Assis desempenhou um importante papel. Efetivamente, centrada, desde o segundo decênio do séc. XIII, num tipo de apostolado itinerante, constituiu-se em propagadora involuntária de uma forma muito concreta de liturgia romana: a liturgia da cúria romana. A razão é simples, tratava-se de uma liturgia adaptada às exigências dos capelães do Papa, que necessitavam de um ofício mais simples e prático[14], e que, portanto, possuía livros de transporte mais cômodo e de fácil manuseamento. Desta forma, por obra dos frades franciscanos, estas redações práticas e, especialmente, o «Missal» e o «Breviário da cúria romana», correram por todo o mundo, conseguiram uma boa aceitação e, evidentemente, foram copiadas. Assim, os discípulos de S. Francisco, facilitaram à liturgia ocidental uma standartização não só teórico-jurídica, mas sim efetiva.

Se este período se caracteriza pela adesão das dioceses ocidentais à liturgia romana e na progressiva unificação litúrgica, também se adverte que a atitude dos fiéis diante da liturgia se modifica profundamente. A liturgia, ação comum de sacerdotes e povo, parece reduzir-se agora a uma incumbência quase exclusivamente clerical. O povo assiste à missa, mas atento às suas devoções subjetivas, extra-litúrgicas. A assistência contenta-se com «ver», sem participar verdadeiramente, e produz-se uma distancia cada vez maior entre o celebrante e os fiéis[15].

4. Do Concílio de Trento ao Concílio Vaticano II

A decadência litúrgica e certos abusos praticados dentro da Igreja (alguns destes litúrgicos) foram algumas das causas da reação protestante (Lutero, Calvino, Zwinglio). Os ataques de Lutero e Zwinglio contra a Missa; o descontentamento por parte dos católicos perante a incoerente e inclusive caótica situação, tanto da praxis litúrgica, como dos correspondentes livros litúrgicos; a evidência dos muitos abusos que se cometiam; e a convicção de que os bispos, por si sós, não podiam solucionar tais problemas, levou o Concílio Tridentino a considerar a reforma dos livros da Missa e das horas canônicas e, simultaneamente, também a reforma da praxis litúrgica neles codificada. Desta forma, Trento desempenhará, também na história da liturgia romana, um papel importante.

No entanto, como o Concílio tinha por principal preocupação impedir abusos e instituir reformas, embora a liturgia fosse largamente discutida, não se propôs nenhuma reforma concreta dos livros litúrgicos [16]. Efetivamente, Trento deixa nas mãos do Papa a execução prática de uma reforma litúrgica, que, segundo Neunheuser, possui um princípio definido pelo próprio Concílio: o de reformar sem, no entanto, perder o contacto com o período precedente, isto é, continuando a tradição medieval.

Em 1568 publicou-se o Breviário romano e em 1570 o Missal romano, obra de Pio V. Os critérios utilizados na elaboração de ambos os livros procuram potenciar uma liturgia uniforme (suprimem-se, portanto as liturgias galicanas e hispânicas, e verifica-se a latinização das liturgias siro-malabares), fixa e bem determinada (surgem as rubricas que indicam com pormenor o modo de celebrar).

No que diz respeito à assembleia e à sua participação nas celebrações litúrgicas, prevalecem as devoções e os exercícios pios sobre as formas litúrgicas. Ou seja, a obra reformadora do Concílio de Trento e dos Papas que o seguiram, é digna de altíssima estima, pois salvou a liturgia da profunda crise do século XVI. No entanto, é também uma obra limitada, pois, ao fixar a liturgia para superar a situação caótica dessa época, afastou-a também da vida real, obrigando a piedade dos fiéis a apartar-se para se centrar em formas de piedade popular e devocional, dando assim origem, à cultura religiosa do Barroco.

O período do barroco é caracterizado, no que diz respeito à cultura religiosa, por uma cultura de festa. Abundam as manifestações teatrais, os jogos populares, com utilização de todos os recursos musicais: órgão, polifonia, cantos populares; multiplicam-se as peregrinações e as procissões. A festa por excelência é a do «Corpus Domini», caracterizada pelas grandes procissões, com enorme esplendor e grande número de participantes. Ou seja, se, por um lado, podemos identificar uma liturgia celebrada segundo a uniformidade requerida pela reforma tridentina, em todo o lugar, de forma obediente e conscienciosa, verificamos, por outro lado, que a criatividade e a adaptação são deslocadas para a periferia da liturgia. Encontramos uma piedade popular de uma extraordinária riqueza e variedade, como são as procissões e peregrinações já referidas, e grandes mudanças no que diz respeito ao canto litúrgico, e na arte em geral, mas estas mudanças e evoluções, próprias da mentalidade da época, já não se encontram no centro da liturgia.

Nesta época posterior ao Concílio de Trento e até a reforma do Vaticano II, manter-se-á o fixismo e rubricismo. E, se no mundo ocidental a inculturação, sem desaparecer totalmente, é remetida para a periferia da liturgia ou para uma adaptação mais superficial, no mundo não ocidental as respectivas culturas não penetram na liturgia. Tal não significa que não se ouvissem vozes dentro da Igreja que clamavam por uma valorização das diferentes culturas e por uma maior aproximação a estas por parte da Igreja e, concretamente, da liturgia[17]. É o caso de uma instrução publicada pela Sagrada Congregação da Propaganda Fide acerca do problema do encontro entre Evangelho e cultura. Está dirigida aos Vigários Apostólicos da Sociedade das Missões Estrangeiras e data de 1659, apenas quarenta anos depois da criação desta Congregação. Este documento exorta a não persuadir os povos evangelizados a mudarem os seus ritos e costumes, desde que estes não sejam contrários, de forma clara, à religião e aos bons costumes; anima a valorizar tais elementos culturais e pede aos Missionários que procurem habituar-se e adaptar-se a tais costumes[18].

São conhecidos os casos de Roberto de Nobili e de Mateo Ricci, como tentativas de positiva inculturação e como vozes que defenderam a atenção por parte da Igreja a favor das culturas dos povos evangelizados. Na realidade, ambos defenderam a adaptação por parte dos Missionários aos costumes dos povos que foram evangelizar (Índia, no caso de Roberto de Nobili, e China, no caso de Mateo Ricci). Aprenderam as línguas locais e viveram de acordo com a cultura desses povos (modo de vestir, alimentação, algumas cerimônias e ritos, etc.), procurando aprender e respeitar as tradições e formas culturais que não eram contrários à fé e aos bons costumes. No entanto, apesar dos esforços citados e de muitos outros, a liturgia destes ambientes permaneceu praticamente impermeável às diversas culturas.

Durante os séculos XVII e XVIII, houve vozes no continente europeu no sentido de retomar as liturgias galicanas. Apesar de possuírem conotações políticas, representaram um desejo válido de regressar ao estado inicial de pluralismo litúrgico dentro da Igreja ocidental.

É interessante mencionar como o Sínodo de Pistóia (1786) e o Congresso de Ems (1786), propõem reformas litúrgicas em que se procura voltar ao autêntico espírito e forma da liturgia romana. Reformas que parecem representar o advento do que foi depois o movimento litúrgico.

Este movimento foi descrito por Pio XII como um sinal das providenciais disposições de Deus no nosso tempo, como um movimento do Espírito Santo na sua Igreja. Propunha um retorno à forma clássica da liturgia romana, através de uma investigação histórica e teológica da tradição litúrgica, motivada por um zelo pastoral. Graças a este movimento, o Vaticano II foi capaz de abrir a porta à adaptação litúrgica e de redigir os seus princípios. Assim, com tal objetivo, procura voltar à simplicidade original e à claridade do rito romano, oferecendo a possibilidade de adaptá-lo às diversas culturas e tradições.

É necessário, no entanto, chamar a atenção para a crescente tomada de consciência, nos ambientes de missão, da necessidade de valorizar e ir ao encontro das culturas dos povos evangelizados. A Igreja tinha de ter este aspecto em consideração e o Evangelho, a obrigação de se encarnar nas culturas. Tal consciência transmite-se a toda a Igreja na aula sinodal do Concílio Vaticano II e refletir-se-á na elaboração dos documentos conciliares, começando pela Constituição Sacrosanctum Concilium, particularmente nos seus números 37 a 40, onde se estabelecem as normas para adaptar a liturgia à mentalidade e tradições dos povos.

«(...) graças ao impulso dado pelo Concílio, despertou uma nova compreensão da missão e, com ela, uma grande esperança. A universalidade do plano divino da salvação, a natureza Missionária da Igreja e a responsabilidade de todos e cada um na Igreja por esta tarefa, tão fortemente reafirmadas no Decreto conciliar sobre a atividade Missionária da Igreja Ad gentes, tornou-se a estrutura de um novo compromisso»[19].

A reforma litúrgica do Vaticano II teria tido como modelo a liturgia romana clássica ou pura. «Pura», no sentido de forma litúrgica existente em Roma antes da incorporação de elementos franco-germânicos no século VIII. Por «clássica» entende-se a forma desenvolvida pelos pontífices romanos desde o final do século IV ao século VII. Durante este período, a liturgia romana absorveu os traços culturais romanos de simplicidade, sobriedade e sentido prático.

Efetivamente, o movimento litúrgico, que desde sempre manifestou uma certa predileção pelo período clássico da liturgia romana, exerceu uma acentuada influência sobre o Concílio Vaticano II. Talvez por isso o documento conciliar, na promoção da revisão dos ritos litúrgicos adote algumas das características atribuídas pelos estudiosos à liturgia romana clássica:

«Os ritos devem resplandecer com uma nobre simplicidade; devem ser breves, claros, evitando repetições inúteis, adaptados à capacidade dos fiéis e, em geral, não devem ter necessidade de muitas explicações» [20].

Esta restauração clássica, apesar de algo criticada, antes, durante e depois do Concílio, foi considerada pelos Padres conciliares como um meio eficaz para promover uma participação ativa e inteligente e, como passo prévio à adaptação litúrgica. O Concílio queria oferecer às Igrejas locais um modelo litúrgico, uma editio typica, caracterizada pela sobriedade, simplicidade e claridade do rito romano.

No entanto, uma vez elaboradas as edições típicas, não podemos afirmar que nos encontramos numa situação idêntica à das Igrejas franco-germânicas do século VIII. Pois, embora a reforma tenha estado claramente inspirada no período clássico, ela possui muitíssimos elementos das épocas posteriores. Podemos por isso dizer que se mantém ligada à liturgia de Pio V, à da Idade Média, dos tempos carolíngios, e não apenas à do período clássico.[21]

À luz da Sacrosanctum Concilium, podemos advertir que o processo de adaptação dos livros litúrgicos terá necessariamente de incluir duas fases: uma primeira, que consiste na elaboração da editio typica dos livros litúrgicos; e uma posterior, que seria a adaptação dessa forma restaurada (editio typica) às várias culturas e necessidades pastorais. Encontramo-nos atualmente nesta segunda fase da reforma conciliar.

5. Conclusão
A liturgia, como a Igreja, vive na história e está ligada a ela de muitas maneiras. Ela desenvolve-se, cresce, escolhe as formas mais convenientes para ser expressão mais inteligível do Mistério de Cristo aos fiéis das diversas épocas e culturas.

Vemos, pois, como a liturgia autêntica não se identifica com a liturgia de uma dada época cultural, nem com a dos tempos apostólicos, nem com a hipotética liturgia romana pura. Ela acontece no presente e pressupõe sempre a Tradição. É como um organismo vivo. Nunca permanece igual e, se se pode falar de uma forma autêntica, ela será sempre a do presente. Por outro lado, se um organismo é o que é no presente, é porque possui um passado. Não se dão, portanto, saltos abruptos, mas sim, uma contínua transformação. Por isso, a liturgia do amanhã possuirá, necessariamente, alguma ligação com a liturgia que vivemos hoje.

Depois desta breve exposição, parece-nos evidente que a inculturação esteve sempre presente na Igreja desde o seu nascimento. Atrevemo-nos a afirmar que inclusive nos longos anos de fixismo litúrgico, o Espírito Santo suscitou no seio da sua Igreja ventos de inculturação. Efetivamente, para além dos casos de inculturação profunda que referimos, como por exemplo, as promovidas por Mateo Ricci, vimos como, nesse período, se desenvolvem formas de piedade que se podem considerar positivas, talvez algo periféricas à liturgia, mas que de algum modo a enriquecem e que hoje pertencem ao patrimônio litúrgico da Igreja.

Junto com as inculturações positivas, a história ensina-nos que se dão desvios, erros e abusos. As várias reformas litúrgicas constituem uma prova clara desse fato.

É interessante verificar, como recorda Neunheuser, que depois destas reformas nos encontramos atualmente com edições típicas nas quais se encontra presente algo de cada época cultural. Isto é, encontramos uma continuidade clara entre a liturgia atual e a que se viveu nas diferentes épocas culturais. Pensamos poder concluir que este aspecto de continuidade será uma das características de uma inculturação genuína e profunda. Daí a conveniência de recorrer sempre de novo às formas precedentes, de modo que as formas novas sejam verdadeiramente expressão autêntica e fiel das estruturas essenciais que foram magistralmente expressas nos restantes períodos[22].


(Artigo publicado em duas etapas, nas edições nº 05 e nº 06 da Edições Licel, disponíveis, respectivamente em: http://www.cliturgica.org/edicao.php?id=6 e  http://www.cliturgica.org/edicao.php?id=7)


[1] Cfr. B. NEUNHEUSER, Storia della liturgia attraverso le epoche culturali, Tivoli 1988, pp. 15-22.
[2] Cfr. Ibíd., p. 41; A. TRIACCA, Sviluppo - Evoluzione - Adattamento - Inculturazione?, em I. SCICOLONE (ed.), L’adattamento culturale della liturgia, Roma 1993, p. 85.
[3] Cfr. A. CHUPUNGCO, Liturgia e inculturazione, em A. CHUPUNGCO (ed.), Scienzia liturgica, II, Casale Monferrato 1998, pp. 363 ss.
[4] Cfr. B. NEUNHEUSER, Storia della liturgia attraverso le epoche culturali, Tivoli 1988, p. 50.
[5] No entanto, através destas variadas manifestações continua, no seio dos povos que aderem ao cristianismo, sem variações através dos tempos e dos testemunhos humanos, a única e comum (católica) tradição litúrgica. Da unidade primordial (judaico-cristã) passa-se à pluralidade expressivo-litúrgica. Por outras palavras, a universalidade da tradição litúrgica encarna-se na lei do particularismo das diversas tradições litúrgicas. Cfr. A. TRIACCA, Liturgia e tradizione, em A. BERNARDINO (ed.), Dizionario patristico e di antichità cristiane, II, Casale Monferrato 1983, pp. 1980 ss.
[6] Cfr. CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS, Instrução Varietates legitimae (25.I.94), 36: AAS 87 (1995) 302.
[7] Cfr. SC, 38-39. Deve-se respeitar “a unidade substancial do Rito romano” (SC, 38) e partir das edições típicas estabelecidas (SC, 39).
[8] Cfr. B. NEUNHEUSER, Storia della liturgia attraverso le epoche culturali, Tivoli 1988, pp. 57-74. Este autor descreve desta forma os elementos formais característicos do génio da liturgia romana: “(...) notiamo subito la loro semplicità precisa, sobria, breve, non verbosa, poco sentimentale; la loro disposizione chiara e lucida; la loro grandeza sacra e umana insieme, spirituale e di gran valore letterario” (Ibíd., p. 67).
[9] Cfr. E. CATTANEO, Il culto cristiano in occidente, Roma 1984, pp. 97-123; M. RIGHETTI, Manuale di storia liturgica, I, Milano 1964, pp. 187-696; T. KLAUSER, Breve historia de la liturgia occidental, Barcelona 1968, pp. 28 ss.
[10] Cfr. A. TRIACCA, Sviluppo - Evoluzione - Adattamento - Inculturazione?, em I. SCICOLONE (ed.), L’adattamento culturale della liturgia, Roma 1993, p. 73-75.
[11] Cfr. B. NEUNHEUSER, Storia della liturgia attraverso le epoche culturali, Tivoli 1988, pp. 80 e 84.
[12] Cfr. T. KLAUSER, Breve historia de la liturgia occidental, Barcelona 1968, pp. 60 s
[13] Citamos por exemplo, os casos enunciados por Vogel, como é o caso das missas secas (sem ofertório, nem comunhão, nem cânon), as missas bi-, tri-, quadrifacciatas (vários formulários de missa com apenas um cânon e uma só comunhão), etc. (cfr. C. VOGEL, Introduction aux sources de l’histoire du culte chrétien au moyen âge, Spoleto 1966, p. 136). Neunheuser explica estes abusos como consequência de uma evolução na espiritualidade e na prática pastoral. Começam a celebrar-se muitas missas nas Igrejas, capelas e santuários que se vão construindo. Esta multiplicação parece dever-se a facilitar uma maior participação dos fiéis, no entanto, posteriormente, esta diversificação verifica-se por razões puramente devocionais, privadas, especialmente pelo sufrágio dos defuntos. São necessárias, assim, uma maior quantidade de missas e começa-se a celebrar mais de uma vez por dia. As autoridades eclesiásticas reagem proibindo a binação que, nos séculos X-XI, desaparece. Então, para satisfazer a piedade de muitos que requerem missas por intenções pessoais surgem os abusos antes referidos.
[14] Cfr. B. NEUNHEUSER, Storia della liturgia attraverso le epoche culturali, Tivoli 1988, p. 104.
[15] Ibidem, p. 107.
[16]Cfr. G. ALBERIGO, Dalla uniformità di liturgica del Concilio di Trento al pluralismo del Vaticano II, em «Rivista liturgica» 69 (1982) 609.
[17]João Paulo II, na sua exortação apostólica Ecclesia in Asia, apresenta um resumo histórico deste período sob a óptica da evangelização: «O trabalho apostólico de S. Francisco Xavier, a fundação da Congregação da Propaganda Fide pelo Papa Gregório XV e as orientações dadas aos missionários para respeitarem e estimarem as culturas locais, tudo contribuíu para se obter resultados muito positivos no decurso dos séculos XVI e XVII. No século XIX, houve novamente um ressurgimento da actividade missionária. Várias congregações religiosas empenharam-se completamente nesta tarefa. A Congregação da Propaganda Fide foi reorganizada. A insistência maior foi posta na edificação das Igrejas locais. Obras educativas e caritativas andavam de mãos dadas com a pregação do Evangelho. Consequentemente, a Boa Nova continuou a estender-se a um número sempre maior de pessoas, sobretudo entre os pobres e marginalizados, mas também, aqui e além, no meio de elites sociais e intelectuais. Fizeram-se novas tentativas para inculturar a Boa Nova, embora se revelassem ainda insuficientes. Não obstante a sua presença por longos séculos e os seus múltiplos esforços apostólicos, a Igreja em muitos lugares é ainda considerada como estranha à Ásia, tendo mesmo sido associada muitas vezes, na mente das pessoas, com os poderes coloniais», em JOÃO PAULO II, Exort. Ap. Ecclesia in Asia (6.XI.99), 9: AAS 92 (2000) 460.
[18]«Non cercate in nessun modo di persuadere i popoli che evangelizzate a cambiare i loro riti, consuetudini e costumi purché non siano in maniera chiarissima contrari alla religione e ai buoni costumi. Che cosa c’è di più assurdo di portare in Cina la Francia, la Spagna, l’Italia o un’altra parte dell’Europa? Non introducete queste nazioni, ma la fede la quale non respinge, né lede riti e consuetudini di nessun popolo, purché non siano cattivi, ma al contrario, vuole conservarli in tutto il suo vigore... Perciò non paragonate mai gli usi di quei popoli con gli usi europei, ma piuttosto abituatevi voi ad essi con il massimo impegno»: SAGRADA CONGREGAÇÃO DE PROPAGANDA FIDE, Instructio Vicariorum Apostolicorum ad Regna Synorum Tonchini et Cocinnae Proficiscentium (1659), em P. GIGLIONI, Inculturazione: teoria e prassi, Città del Vaticano 1999, pp. 49 ss.
[19]JOÃO PAULO II, Exort. Ap. Ecclesia in Asia (6.XI.99), 9: AAS 92 (2000) 460.
[20]SC, 34.
[21]Cfr. B. NEUNHEUSER, Storia della liturgia attraverso le epoche culturali, Tivoli 1988, p. 151.
[22]Cfr. Ibid., p. 151.

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