quinta-feira, 2 de junho de 2011

"ELE (DEUS) ESTÁ DENTRO DE NÓS"


(Ao longo desta reflexão, citamos algumas postagens e endereços da internet. Quem não as leu e quiser fazer isso, basta clicar sobre o título).

No domingo, dia 29 de maio de 2011, publicamos um texto em nosso blog, com autorização de seu autor, sob o título de BÍBLIA E LITURGIA: REFLEXÕES DA CAMINHADA. Este texto que é fruto de vários encontros e retiros com jovens, composto de várias reflexões, foi postado originalmente no blog ”O mistério e a utopia”, do Emerson Sbardelotti Tavares, que é de Vila Velha, Estado do Espírito Santo (sugestivo).

A primeira destas reflexões diz assim:

"Abriram-se os olhos e o reconheceram. Mas Ele desapareceu de sua vista" (Lc 24,31)
Num retiro para 150 jovens, falávamos sobre Mística e Espiritualidade da PJB. Um dos textos trabalhados foi o que fala do Caminho de Emaús.
Aquela juventude animada entrava em contato, a maioria pela primeira vez, com os degraus da Leitura Orante da Bíblia.
Individualmente, saíram para estudar o texto. No meio das descobertas e dúvidas, surgiu uma intrigante pergunta:
- "Para onde havia ido Jesus após desaparecer?"
O silêncio dominou o ambiente!
Alguns minutos depois, tímidas respostas foram aparecendo:
- "foi para junto de Deus!"- "foi para o céu!"- "foi para o paraíso!"- "foi ao encontro de Maria!"- "foi ao encontro dos discípulos!"- "voltou para a Galiléia!"
Pude observar que tais respostas não saciavam o que o grupo estava sentindo. Aqueles corações se abrasavam.
Mas, a resposta ideal, ainda não havia sido dada.
Sugeri que todos(as) se levantassem e que de dois em dois caminhassem em silêncio, pelas dependências da casa, depois conversassem e meditassem sobre aquele trecho da leitura.
Ao retornarem, notei, que estavam muito emocionados(as) com a experiência e pedi que dessem a tão esperada resposta. Foi quando uma garota, uma das mais novas, com seus 14/15 anos, disparou:

- "Jesus foi para dentro deles!"

Mais uma vez, o silêncio dominou o ambiente. Não se precisou dizer mais nada: os abraços e os aplausos falaram mais forte!
Jesus foi para dentro deles e para dentro de cada um de nós; nos anima a caminhar sempre!
Em nossas Comunidades Eclesiais de Base, em nossos grupos da PJB, ter esta clareza é estar no caminho que leva ao Reino. E este caminho passa pelo Inferno do Sofrimento Humano:
- a exclusão, a marginalização, a discriminação, a injustiça, a miséria e a fome.
Jesus mesmo, para chegar ao Pai, passou por este caminho, por isso cumpriu a missão pela qual viveu.
Não perder a dignidade e a coragem para lutar é sinal que verdadeiramente a Salvação está dentro de cada um de nós. Ter força para voltar e anunciar aos outros, tudo o que o Ressuscitado falou e fala durante a caminhada é colocar mais um tijolo na casa comum: a Civilização do Amor!
É ter esperança e acreditar que somos parte do terreno fértil da transformação que virá!”

Não posso negar que este reflexão me fez pensar muito sobre a frase dita pela menina adolescente: “JESUS FOI PARA DENTRO DELES!”

Sabemos que o texto bíblico afirma que quando os discípulos de Emaús o reconheceram, Jesus desapareceu das vistas deles.

“Então se lhes abriram os olhos e O reconheceram... mas Ele desapareceu da frente deles.” (Lucas 24, 31)

Para onde foi Jesus é a pergunta que fazemos desde então!

Na sua peregrinação terrena Jesus disse aos discípulos muitas coisas difíceis de serem entendidas, não só pelos seus primeiros seguidores, mas até mesmo para nós, nos dias atuais.

No dia seguinte ao da postagem destas reflexões, conversando com nossa amiga Márcia Resck que é uma das nossas colaboradoras no site e no blog, ela dizia que aquela frase lhe causara um profundo impacto. - Jesus foi para dentro deles! – como não pensamos nisto antes?

Comungo com o pensamento da Márcia, pois que, de fato, Jesus nos deu e nos dá tantas e tantas pistas, mas nós, assim como os primeiros seguidores, temos dificuldade em apreendê-las, o que não é de estranhar, pois Ele disse também: “Eu te bendigo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequenos.” (Mateus 11, 25).

O Evangelho escolhido para hoje pela Igreja (01/06/2011), João (16,12-15) nos diz:

«Tenho ainda muitas coisas a dizer-vos, mas não sois capazes de as compreender por agora. Quando Ele vier, o Espírito da Verdade, há-de guiar-vos para a Verdade completa. Ele não falará por si próprio, mas há-de dar-vos a conhecer quanto ouvir e anunciar-vos o que há-de vir. Ele há de manifestar a minha glória, porque receberá do que é meu e vo-lo dará a conhecer. Tudo o que o Pai tem é meu; por isso é que Eu disse: 'Receberá do que é meu e vo-lo dará a conhecer'.»

Comentando esta passagem, há mais de 1700 anos, São Gregório de Nazianzo, um dos grandes doutores da Igreja, explicava:

“«Quando Ele vier, o Espírito da Verdade, há-de guiar-vos para a Verdade completa»

Ao longo dos tempos, duas grandes revoluções abalaram a terra; são elas os dois Testamentos, designamo-las assim. Com uma, os homens passaram da idolatria à Lei; com a outra, passaram os homens da Lei ao Evangelho. Um terceiro acontecimento estava predito: aquele que, aqui em baixo, nos há-de fazer subir às alturas, onde já não haverá movimento nem agitação. Ora aqueles dois Testamentos apresentaram o mesmo carácter [...]: não transformaram tudo de forma repentina, desde o primeiro impulso do seu movimento [...]. Tal assim foi para não nos violentar, mas para nos persuadir. Porque o que é imposto pela força não perdura no tempo [...].

O Antigo Testamento manifestou o Pai de forma clara, de forma obscura o Filho. O Novo Testamento revelou o Filho e insinuou a divindade do Espírito. Hoje o Espírito vive entre nós, e dá-Se a conhecer mais claramente. Teria sido arriscado, num tempo em que a divindade do Pai não estava ainda reconhecida, pregar abertamente o Filho, e enquanto a divindade do Filho não estivesse admitida, impor [...] o Santo Espírito. Temer-se-ia que, tal como quem traz o estômago demasiado cheio ou como quem, com olhos ainda fracos, fixa de frente o sol, os crentes se arriscassem a perder aquilo que conseguiriam aguentar, aquilo para que teriam forças. O esplendor da Trindade devia portanto resplandecer por sucessivos desenvolvimentos ou, como diz David, por graduais peregrinações (Sl 83,6) e por uma progressão de glória em glória [...].

Acrescentarei ainda esta consideração: o Salvador sabia certas coisas que estimava não poderem estar ao alcance dos discípulos, apesar de todos os ensinamentos que estes já tinham recebido. Pelas razões acima ditas, Ele mantinha essas coisas guardadas. E repetia-lhes que o Espírito, quando viesse, tudo haveria de lhes ensinar.”
(Comentário ao Evangelho do dia feito por São Gregório de Nazianzo (330-390), bispo, doutor da Igreja Discursó 31, 5A teológica, 25-27; PG 36, 159).


O Padre Antônio Geraldo Dalla Costa (Uma reflexão para o Evangelho do Dia de Pentecostes), comentando o que ele chama de “Discurso da Despedida”, ensina:


“O Evangelho faz parte do discurso da DESPEDIDA de Jesus.
É o testamento que o mestre deixa à Comunidade antes de partir. (Jo 14,15-21)

Os discípulos se mostram abalados e tristes...
Jesus os anima, declarando que não os deixará órfãos no mundo.
Ele vai ao Pai, mas vai encontrar um modo de continuar presente e de acompanhar a caminhada dos seus discípulos.
É uma alusão à sua volta invisível, mas real, mediante o Espírito Santo, que o substituirá junto aos discípulos e permanecerá sempre com eles e com toda a Igreja.
É a possibilidade de viver em intensa comunhão com o Pai e o Filho, pelo Espírito da Verdade, que nos é dado como dom da Páscoa.

Para isso, é preciso um amor autêntico, que se manifesta na observância dos Mandamentos: "Quem me ama... guarda os meus mandamentos..."
Só quem vive esse amor está apto a receber o Espírito Santo.
O amor supera o medo, a separação e a morte...

- Jesus fala de "Os MEUS Mandamentos...":  
Não se trata dos 10 Mandamentos, pois já existiam no Antigo Testamento...
Pouco antes, Jesus resumira toda a Lei e os Profetas em "Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como ele nos amou" (Pe. Antônio Geraldo Dalla Costa).

Ah, este Mandamento de Jesus! “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como Ele nos amou”, ou por outra, “Amar ao próximo e a teu inimigo como a ti mesmo e a Deus sobre todas as coisas”.

Amar a Deus, a quem não se conhece já é muito difícil e Ele nos pede ainda para amar o nosso próximo e até mesmo o nosso inimigo. Jesus tá de brincadeira! Como isso é possível?

Antes de ter publicado as reflexões do Emerson, eu havia postado uma reflexão pessoal sobre este Mandamento de Jesus, onde confesso as dificuldades que encontro para praticá-lo e falo sobre a necessidade de exercitarmos “a vontade de amar”. Sim, porque este “amar de Jesus” pressupõe a nossa adesão. Esta reflexão está em Como entender este mandamento de Jesus? «É este o Meu mandamento: que vos ameis uns aos outros como Eu vos amei».

Depois do resultado e da resposta dada pela menina/adolescente, fico pensando. “É..., Deus realmente esconde de nós, que nos consideramos adultos experientes e vividos, muitas coisas que deveríamos ter aprendido se realmente estivéssemos aberto ao Espírito”.

Apesar de, por nossa fé, acreditarmos na Trindade Santa, na maioria das vezes, pensamos nas Três Pessoas Divinas como seres separados, individuais, ou, como dizem os jovens “cada um na sua”.

E como temos dificuldade para entender ou aceitar certos mistérios!

Há alguns meses, me pediram para falar para um grupo de casais sobre a família. Quando preparava o material, pensei em começar pela Família Perfeita, depois, pela Família de Nazaré (que também entendemos como perfeita), para então falar do nosso núcleo familiar e das relações que o devem envolver.

A Família Perfeita a que me refiro, claro e evidente, é a Santíssima Trindade, que deve ser o Primeiro Modelo a ser seguido. Mas como explicar este mistério da Trindade – Três em Um? Jesus sempre disse: Eu e o Pai somos Um.  

Lembrei-me que havia lido em algum lugar uma imperfeita analogia com o Sol. E por que não lançar mão dela para falar sobre a Trindade Santa?

E fiz a seguinte analogia (não se esqueçam que é apenas uma analogia grosseira para tentar pensar a Trindade Santa).

“Nenhum ser humano, despido de qualquer aparato tecnológico, jamais viu ou verá o Sol. O que vemos é a sua luz. Ninguém, a olho nu, poderá dizer: ou Sol é feito disso ou daquilo; o Sol tem montanhas ou é uma planície; o Sol é sólido ou é gasoso,... Enfim, não enxergamos o Sol em suas formas e composição. Não o vemos, mas sabemos que ele está lá. E por quê? Por que vemos sua luminosidade radiante que nos propícia a vida! Mas sentimos algo ainda que não vemos e podemos dizer com toda certeza que ele existe: o calor do Sol. O calor que faz a vida na terra existir. Sem ele, morreríamos congelados.

Nessa grosseira analogia, podemos forçadamente comparar o Sol ao Pai, que jamais foi visto, mas sabemos que Ele existe, que Ele está lá, em algum lugar do Cosmo, criando e nos propiciando a vida. O Pai é o DEUS PARA NÓS; ora, vemos a luz do Sol, assim como o mundo viu Jesus. Para nós, assim como a luz personifica o Sol, Jesus personifica o Pai. O Pai realmente existe, pois Ele nos mandou sua Luz, que ilumina nossos corações e nossas vidas. Jesus é o DEUS CONOSCO; não vemos o calor do Sol, mas o sentimos em nossa pele, em nosso corpo e se ele nos faltar um só dia, perecerá toda a humanidade. Assim também sentimos a ação do Espírito Santo que age em nosso ser, em nossa consciência, nos indicando sempre o reto caminho a seguir. Mas, assim como nos escondemos do calor do Sol quando ele está abrasador, assim também nos escondemos á ação do Espírito Santo, quando Ela nos diz para seguir caminhos que, por nossa concupiscência[i], não queremos seguir. O Espírito Santo É O DEUS EM NÓS. (os negritos deste parágrafo correspondem a sugestão de Márcia Resck)  

Mas por que esta digressão?

Apenas para dizer que não podemos jamais dissociar as Três Pessoas da Santíssima Trindade. Quando no referimos à ação do Pai, à ação de Jesus, o Filho, ou à ação do Espírito Santo, o Paráclito, não podemos jamais nos esquecer que estamos nos referindo, na verdade, à ação da Santíssima Trindade! É a Trindade Santa que age, assim como é o Sol inteiro que age sobre o nosso Planeta.

Seguindo o raciocínio daquela jovem, pequena em tamanho e em idade, mas grandiosa na sua espiritualidade, podemos dizer que o Sol “entra dentro” do Planeta Terra, dando ao nosso “planetinha” sua vida, sua luz e seu calor.

Assim também, temos que pensar a resposta desta menina: "Jesus foi para dentro deles!"

Mas não foi só Jesus! Foi a Trindade Santa que foi para dentro deles. Foi o Pai, O Filho e o Espírito Santo!

20 Não rogo somente por eles, mas também por aqueles que por sua palavra hão de crer em mim. 21 Para que todos sejam um, assim como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, para que também eles estejam em nós e o mundo creia que tu me enviaste. 22 Dei-lhes a glória que me deste, para que sejam um, como nós somos um: 23 eu neles e tu em mim, para que sejam perfeitos na unidade e o mundo reconheça que me enviaste e os amaste, como amaste a mim.

 24 Pai, quero que, onde eu estou, estejam comigo aqueles que me deste, para que vejam a minha glória que me concedeste, porque me amaste antes da criação do mundo. 25 Pai justo, o mundo não te conheceu, mas eu te conheci, e estes sabem que tu me enviaste. 26 Manifestei-lhes o teu nome, e ainda hei de lho manifestar, para que o amor com que me amaste esteja neles, e eu neles. (João 17, 20-26).

Já agora, depois de refletir sobre tudo isso, posso e devo tomar a liberdade de alterar o dito daquela garota; Não só "Jesus foi para dentro deles!" - A Trindade Santa foi para dentro deles e para dentro de cada um de nós, seus filhos e filhas!

Creio que, em parte, pois não tenho a pretensão se descobrir todos os mistérios divinos, foi isso que Jesus sempre quis nos transmitir. Ele, o Pai e o Espírito Santo estão dentro de cada um de nós, seres humanos.

Mas, dirão alguns, se fosse assim, a maldade não existiria no mundo!

Ocorre que Deus (Pai, Filho e Espírito Santo) é um Pai de amor, que criou a humanidade, mas dedica aos seus filhos e filhas um respeito muito especial. Deste amor e respeito nasceu para Ele a “obrigação” de “respeitar a liberdade de sua criação”. Ele não nos impõe que o amemos ou que o respeitemos. Através da Palavra, seja a Bíblia Cristã ou Hebraica, seja nos livros sagrados de outras religiões, Deus, como Pai amoroso e bondoso, nos aconselha, nos mostra os caminhos para uma vida plena e feliz, mas não nos impõe nada!

A propósito, Jesus nos deixou uma lição exuberante neste sentido na parábola do Pai Misericordioso ou do Filho Pródigo. É só ler e refletir esta parábola para percebemos esta insondável característica de Deus.

Desta liberdade que Deus nos concede nasce a possibilidade de agirmos de forma contrária aos seus conselhos. Todos nós temos plena consciência de que, quando fazemos alguma coisa que confronta estes conselhos, “nós estamos fazendo alguma coisa errada”, “alguma coisa que não vai bem com minha consciência”, “alguma coisa não-cristã”,... enfim, sabemos que estamos fazendo alguma coisa que não deveríamos fazer, mas a concupiscência[ii] nos leva a isto.

O Deus que está dentro de nós nos diz: “você não deve fazer isso, está errado, vai causar mal a você e a outras pessoas...”. Mas, a nossa fraqueza e a nossa recusa em atender à nossa consciência, em crer nas palavras dos livros sagrados que foram inspirados nesta consciência (que em última análise são as Palavras de Deus), a nossa concupiscência, nos faz decair, nos leva para o lado aparentemente mais fácil de resolver as coisas da vida. E aí, surge com toda sua força a maldade, a ganância, o egoísmo, a inveja, etc., etc...  

Não é certamente Deus que permite a maldade; ela surge no e do ser humano em decorrência da liberdade que Deus nos dá de escolher caminhos.

Deus não só está no meio de nós, como professamos na celebração eucarística, mas podemos ousar dizer com uma garota de 14/15 anos que Ele está dentro de nós!

A nossa grande dificuldade é deixar este Deus que nos habita agir. É extremamente difícil libertarmo-nos da nossa concupiscência, que nos leva a tomar atalhos para conseguir aquilo que achamos que nos dará prazer e alegria imediatos. E aí caímos na grande armadilha da vida e sofremos. E nos perguntamos: - Por que Deus permitiu isso? Não foi Deus que permitiu. Fomos nós que nos permitimos escolher os caminhos contrários à nossa própria consciência, mas, como é inerente a esta falta de consultar e acolher a consciência, transferimos a culpa. E em geral a transferimos para Deus. E por vezes, desistimos Dele.

Fica-nos a esperança de que Deus nunca desiste de nós. Ele está dentro de cada um e, como o Pai Misericordioso da parábola, Ele está sempre a nos esperar, de braços e coração abertos, para nos cobrir de beijos e abraços. E feliz, muito feliz, a cada filho pródigo que se arrepende e volta ao seu regaço acolhedor.

Pois com certeza, “DEUS ESTÁ DENTRO DE NÓS”!

Gazato – 01/06/2011

PS. Eu ousaria ainda indicar a todos a leitura de uma reflexão que postei hoje (01/06/2011) em nosso blog, antes de elaborar esta reflexão. É muito possível que sua re-leitura tenha me inspirado: Deus te encontrará




[i]Para o povo grego, aquele que vivia para realizar seus desejos, inclusive materiais, era de natureza concupiscente,e portanto, um escravo”. Renata Fernandes entrevista Lázaro Freire
15 Não ameis o mundo nem as coisas do mundo. Se alguém ama o mundo, não está nele o amor do Pai. 16 Porque tudo o que há no mundo - a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida - não procede do Pai, mas do mundo. 17 O mundo passa com as suas concupiscências, mas quem cumpre a vontade de Deus permanece eternamente. (1João 2, 15-17)

[ii] e portanto, um escravo. Liberdade era sair de casa, participar da pólis, contemplar o belo, ter olhos para buscar a sabedoria. Animais e escravos é que, limitados aos prazeres sensoriais e necessidade de sobrevivência, viviam para a satisfação dos desejos. Dá o que pensar sobre nossa "liberdade" de "chegar lá" em uma sociedade orientada a consumos e desejos, onde a filosofia, a espiritualidade e o autoconhecimento dão lugares a best-sellers como "O Segredo".
Os gregos têm nisso alguma razão. Animais acordam, comem, bebem, se reproduzem, desejam, marcam território, deitam no espaço mais confortável disponível, depois dormem, repetindo o ciclo até morrer. Não há abstração, não há subjetivo, não há um sentido maior. A maioria das pessoas "de sucesso" que aspiramos vir a ser fazem apenas o mesmo, embora com algum pedigree. Nunca, em toda história da humanidade, precisamos tanto de filosofia e de sentido como nos tempos de hoje; mas ironicamente esta própria ausência faz com que, peixes que não percebem a água do oceano, valorizemos o imediatismo da situação oposta.

Tratei recentemente de uma socialite que havia realizado todos seus desejos, inclusive financeiros e "românticos", mas que para isso sacrificou seus valores, suas origens, e aqueles que mais amou. Hoje vive infeliz e sem sentido, luxuosamente imersa em vazios, fobias e culpas, e chorando ao perceber não conseguir sequer interagir ou merecer o amor e recursos que hoje tem, vindos mais de desejos complexos do que da simplicidade do coração. Um inferno em contos de fadas. Foi um caso clínico didático e desesperador, daqueles que nos deixam com uma pulga na orelha em relação ao que estamos co-criando com nossos desejos e existência.
Renata Fernandes entrevista Lázaro Freire

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